sábado, 24 de fevereiro de 2007

Extra

O homem é a desmedida de todas as coisas.

Nossa casta dominante e a poluição subcultural norte-americana

Adriano de Paula Rabelo

"O patrão mandou cantar com a língua enrolada/ Everybody macacada, everybody macacada/ E também mandou servir uísque na feijoada/ Do you like it, macacada, do you like it, macacada..." Assim começava um samba dos anos 1970, criticando, naquela época pré-globalização, as políticas de enxovalhamento cultural do imperialismo e a tendência brasileira de aceitá-las um tanto passivamente.

Dos decênios finais do século XVIII até por volta do final do anos 1930, o grande modelo de civilização para a elite brasileira foi a Europa. A macaqueação de códigos da cultura européia funcionava como uma marca de classe e uma carta de branquidade para uma casta envergonhada do enorme contingente de sangue negro e indígena num povo tão miscigenado como o nosso. Em sua perspectiva, "branco", "europeu" e "moderno" eram índices incontestáveis de "superioridade".

No contexto da Segunda Guerra Mundial, a influência dos Estados Unidos, que vinha crescendo desde os decênios finais do século XIX, especialmente após a proclamação da República e da Primeira Guerra, assume absoluta preponderância no horizonte de nossa casta dominante, e esse país, de formação relativamente semelhante à do Brasil, é tomado como um modelo de sociedade a ser copiado para superarmos o nosso atraso. No embate de forças entre os Estados Unidos e as potências européias, em especial a Alemanha nazista, os americanos mantiveram no Brasil, entre 1940 e 1946, o Office of the Coordinator of Commercial and Cultural Relations Between the American Republics, órgão de propaganda política e disseminação de uma visão ultrapositiva do estilo de vida americano. A partir de então, o cinema, a música, o sistema editorial, o noticiário transformam-se numa grande máquina a serviço do imperialismo ianque, obtendo sólida adesão por parte do mesmo estrato social que tradicionalmente se deslumbrava com a França e a Inglaterra, países naquele momento em já em franca decadência.

Desde então, os filhos de nossas potestades econômicas, que antes se bacharelavam na Europa, passam a se graduar em universidades americanas, retornando com um diploma que é um símbolo de status. A língua inglesa torna-se o idioma a ser aprendido obrigatoriamente por qualquer um que tenha pretensões intelectuais ou de se apresentar como "moderno". A macaqueação do estilo de vida americano dissemina-se.

Alberto Pavão, em Rock Brasileiro, 1955-65, transcreve uma expressiva notícia de jornal sobre a estréia do filme Ao Balanço das Horas, de Bill Halley, em 1956, na cidade de São Paulo: "A fita ontem exibida era aguardada ansiosamente por certo tipo de moças, cuja idade varia entre 14 e 18 anos (teenagers nos Estados Unidos). Não é ainda a adolescência; pelo menos para os garotos é ainda a puberdade. Os meninos vestem blue jeans, calça zuarte desbotada com bainhas dobradas, que entre nós são usadas como índice de grã-finismo e, no lugar de origem, utilizadas para ordenha de vacas ou limpeza de chiqueiros. Também vestem blusas de camurça e uma camiseta de Jersey; amarram o estojo de rayban na cintura, usam cabelos sobre as orelhas, descendo pela nuca e fofos no topete: fumam, lêem gibis e imitam Marlon Brando ao enrolar os suéteres ao redor do pescoço. Estão matriculados em colégios caros." Esta última observação especifica com precisão a que estrato social pertenciam os macaquinhos de então.

Com o advento da televisão e sua transformação no veículo de comunicação mais influente no Brasil, a macaqueação da cultura americana se "democratizou", atingindo boa parte das classes urbanas mais baixas na escala social. Vieram os rapazes da chamada Jovem Guarda cantando versões baratas de sucessos do roque anglo-saxônico. Vieram nossos hippies, punks e outros bichos underground de realejo. Vieram cantores de baladinhas bregas em inglês de nível colegial. Vieram as gírias e expressões que utilizavam palavras inglesas como um atestado de atualidade. Vieram modos e modas que nos propunham a modernidade e a civilização pela via norte-americana. Veio a propagação informática e a incorporação de seus termos e expressões em sua linguagem original. E veio a chamada globalização, nome atual e eufêmico da superestrutura imperialista.

E aqui estamos nós, neste início do terceiro milênio. Nossa casta dominante com suas mansões em Miami, suas compras em Nova York, seus rebentos matriculados num MBA qualquer, pois o Brasil está sempre muito distante de seu horizonte. Nossa classe média acastelada nos shoppings, seus filhos estudando inglês, passando meia vida na internet e transitando por aí com seus mp3 players. E mesmo a nossa classe mais baixa e periférica com seus funks, hip-hops, raps, roupas e modos que imitam o que se vê nos filmes sobre a marginália americana.

Entrada do mais importante centro cultural da elite brasileira

Certa ocasião, numa fila de supermercado, havia um casal de adolescentes à minha frente que falava sobre figuras do chamado show business norte-americano com tamanha familiaridade que aquilo parecia um bate-papo informal sobre gente de sua própria família ou de seu grupo de amigos íntimos. Tive vontade de lhes perguntar se acaso já haviam ouvido falar num distante país chamado Brasil.

Na visão da grande imprensa brasileira, com seu peculiar sectarismo e sua superficialidade, os Estados Unidos são uma espécie de país da Cocanha, onde reina a mais transbordante abundância para todos e onde os problemas da humanidade estão resolvidos ou em vias de solução. Qualquer questão brasileira merece automaticamente uma comparação com o que se faz por lá, quase sempre em termos de inferioridade. No telejornalismo ainda é pior. Quase todos os dias, e ano após ano, assistimos a reportagens aparentemente sem sentido sobre os rigores do inverno americano, sobre como se vêm resolvendo os problemas de delinqüência nas metrópoles daquele país, sobre como os americanos consomem nas temporadas de liquidação, sobre a tristeza de um menino do Colorado cujo cachorro se perdeu nas ruas, sobre uma senhora da Califórnia cuja galinha pulou a cerca para o quintal do vizinho...

Nas tvs a cabo, a coisa chega aos recordes de absurdo e ridículo. Vários canais exibem somente filmes, telejornais e programas de variedades americanos, muitos sem sequer se preocupar em legendá-los (quando o fazem, são notórios e freqüentes os erros de tradução). Canais direcionados ao público infanto-juvenil exibem unicamente programas e desenhos animados que transmitem valores americanos, povoados de personagens chamados Jayjay, Clifford, Charlie, Barney, Stephanie, Wendy (quando eu era criança, ao menos havia a preocupação de aportuguesar os nomes dos personagens e às vezes até de modificar suas falas originais para aproximá-los um pouco mais de nossa cultura). Certos canais adolescentes e alguns dos chamados talk shows citam figuras relativamente conhecidas nos Estados Unidos, mas que nada representam para nós, discutem questões provincianas daquele país como se tivessem ressonância universal e exibem um estilo de humor que talvez só tenha alguma graça por lá.

O que impressiona ao se fazer um levantamento de quais segmentos da cultura americana são consumidos pelas classes privilegiadas no Brasil é a verificação incontestável de que estão levando gato por lebre. Os Estados Unidos, até mesmo pelas facilidades proporcionadas por sua pujança econômica, têm produzido importantíssimos movimentos de cultura popular, erudita e de massa. Qualquer pessoa medianamente ilustrada seria capaz de citar de improviso grandes filmes, excepcionais músicos, dramaturgos originais, esportistas de gênio originários daquele país. Mas o que se consome em larga escala via televisão, computador, cinema, rádio, jornal, revista, livro é o lixão descartável e supremamente banal da indústria cultural de massas, repetição de fórmulas prontas que enriquecem empresários norte-americanos e seus representantes comerciais no Brasil. O pior é a imitação barata de originais já por si baratíssimos que tem sido recorrente entre nós. Isso resulta na perda da memória de nosso patrimônio cultural e de nossa própria expressão contemporânea.

Não sou chauvinista e considero inevitáveis e enriquecedores os intercâmbios culturais entre povos distintos. Mas por que não promover um conhecimento e um intercâmbio maior com nossos vizinhos hispano-americanos, com a África, com o Oriente? Por que não promover um conhecimento maior de nós mesmos através de um intercâmbio efetivo entre as várias regiões do país?

Onde estão nossas tradições, nossos mitos e lendas, nossa ginga e nossa bossa? Certamente onde sempre estiveram. Entre o povo oprimido das grandes cidades e dos lugares distantes do eixo Rio-São Paulo, entre os desempregados que têm de todo dia reinventar a vida para sobreviver honestamente, entre os programas universitários que ousam encontrar caminhos à margem do pensamento euro ou americanocêntrico, entre todos aqueles que concebem o Brasil como uma nacionalidade original e já madura a ponto de não necessitar do espelhamento em modelos civilizatórios estrangeiros, mas podendo dialogar com eles em pé de igualdade. A postura de inferioridade diante das culturas imperialistas é uma invenção de nossas elites – essas, sim, inferiores e alvares – que muitos danos tem provocado em nossa educação, em nossa auto-estima, em nosso espírito cívico, na forma como o poder vem sendo exercido por aqui.