sexta-feira, 25 de maio de 2007

Dinossauro

O sono é a lagartixa da morte.

Diante da morte

Adriano de Paula Rabelo

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No dia 8 de dezembro de 1980, todos os diários da cidade de São Paulo publicaram o seguinte anúncio fúnebre:

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Ainda que muito bem assessorado

pelos “Homens de avental branco”,

foi impossível obter uma prorrogação do prazo.

Eu, SWIATOSLAW SLAVO SIRKS,

Encerrei, em 08 de dezembro de 1980, minha

única negociação infrutífera.

Despeço-me de todos os amigos importantes

e humildes, igualmente queridos por mim.

No próximo dia 15 de dezembro, segunda-

feira, às 20:00 horas, na Igreja do Colégio

Santo Agostinho, à Praça Santo Agostinho,

nº 79, meus pais, minha esposa Rosa Lia e

meus filhos Rosana e Paulo, farão celebrar

em minha intenção um ato religioso, ao qual

serão todos muitíssimo bem-vindos.

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Admirável a postura não convencional e bem-humorada do próprio morto no momento final e definitivo.

Nossa cultura, tão imbuída de valores e comportamentos adolescentes, bem como nosso tempo, que tanto cultua a juventude pela juventude e a saúde de quem está na flor dos hormônios, têm horror à morte. Por isso a ignoram, tentando cassar-lhe a existência por meio de sua não-nomeação. Paradoxalmente, no turbilhão de violência em que vivemos, os que mais estão expostos a fins horrendos são justamente os jovens na faixa entre os quinze e os vinte e cinco anos, cujas mortes são agravadas pela sensação de desperdício de vidas que muito tinham a realizar.

Nesta cultura e neste tempo que tão desesperadamente valorizam a produtividade e a necessidade de deixar uma obra, um nome e uma fama, a morte só pode mesmo ser percebida como algo desesperador para o qual ninguém está preparado. Assim, agarramo-nos à vida por pior que ela seja, por mais sofrimento e desilusão que ela nos obrigue a enfrentar.



A dança da Morte - Hans Holbein

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Curioso como isso se processa no âmbito cultura cristã, que se construiu toda em torno de um assassinato bárbaro, precedido de torturas atrozes. A morte, ponto de partida para a ressurreição, a vida eterna e a bem-aventurança, acabou por se converter, ao invés de num ponto de partida, num ponto final de uma existência de apego a conquistas materiais e prestígio social. Na incerteza sobre o que vem depois – pode ser simplesmente o nada –, na incapacidade das religiões em oferecer um discurso escatológico menos estereotipado, menos simplista e mais claro, no abandono a que este mundo foi evidentemente relegado por qualquer possível divindade, sobraram o discurso e o anseio do gozo permanente. No entanto, essa filosofia do prazer, que já realizou sob formas muito fecundas do carpe diem, atualmente está reduzida a uma miserável, uma avarenta compulsão pela posse de determinadas mercadorias como ilusão de preenchimento do vazio interior. Assim, não é de se estranhar o terror causado pela “iniludível”, que nos arrancará, de forma inexorável, dos castelos de areia que construímos como sentido para nossas vidas num mundo que cada vez mais parece ter perdido completamente o sentido.

Não tenho nenhuma receita sobre como viver ou como enfrentar a morte quando chegar o momento crucial. Apenas verifico que talvez nossa cultura e nosso tempo não estejam agindo muito sabiamente ao lançá-la para debaixo do tapete existencial. Ao seu constante exorcismo por parte daqueles que forçam juventudes eternas, que refugam o sofrimento ou que pretendem reduzir a vida a um parque de diversões, prefiro a postura bem-humorada e a irreverência desse senhor Swiatoslaw, que anuncia ele mesmo seu passamento com a galhardia e a serenidade de quem realmente viveu e por isso pode morrer sorrindo.

sexta-feira, 18 de maio de 2007

Push

Um puxa-saco acaba sempre encontrando um empurra-saco.

Doc

Adriano de Paula Rabelo

Pouco tempo depois de ter ido viver na cidade de São Paulo, em meados dos anos 90, conheci Doc no centro de práticas esportivas da universidade. Talvez o enorme contraste de nossos temperamentos, visões de mundo e opiniões nos tenha aproximado. Seu anticonvencionalismo e senso de humor sempre surpreendente, ao lado de minha seriedade, certa contenção e temperamento propenso ao satírico, acabaram por nos fazer em pouco tempo grandes amigos. Doc é uma das pessoas mais originais, mais honestas e mais imprevisíveis que tenho encontrado. Dele guardo uma antologia de histórias hilariantes.

Transbordante de tensões edipianas, obsessões sexuais e complexos ululantes, Doc, que pertence à segunda geração de uma família de imigrantes do sul da Itália, tem uma atração inexorável por “japonesas”, ou seja, toda e qualquer oriental de olho puxado, etnia tão comum na Paulicéia. Sua explicação para o fenômeno: quando era criança, o pai teria tido uma amante “japonesa”. Sua mãe, ao tomar conhecimento do affair, aprontou um escarcéu, dizendo horrores das orientais. Ao crescer, desejando compreender os motivos da traição paterna, nosso amigo quis possuir o máximo de “japonesas” possível.

Devo acrescentar ainda que Doc é palmeirense e deprimido. A propósito, me vem à lembrança duas outras histórias suas. Certa vez, tendo conhecido uma “japonesa” em Santos, marcou encontro com ela em São Paulo, na tarde do domingo seguinte, tendo arranjado tudo para levá-la a um motel. Encontraram-se após o almoço, namoraram brevemente e foram para o dito estabelecimento, lá chegando um pouco antes das 16h00. Acontece que o Palmeiras jogaria exatamente às 16h00, pelo Campeonato Brasileiro, com transmissão ao vivo pela televisão. O que fez o conquistador? Ligou a tv, sentou-se com a consorte na cabeceira da cama e assistiu a todo o jogo, vibrando com as jogadas de seu time. Somente após o apito final é que ele tomou as devidas providências. Resultado: a “japonesa” nunca mais quis vê-lo.

Quando o Palmeiras foi campeão da Copa Libertadores da América, em 1999, fui com Doc ao Parque Antártica, assistir à final, que foi eletrizante: um 2x2, com disputa de pênaltis. Ao lado de uma linda torcedora de seu time, que nunca tínhamos visto antes, ele vibrava. A cada gol, os dois se abraçavam e se beijavam. Ao final, lá estavam eles atracados num beijo de língua, para festejar o título.

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“Arlequim”, ilustração de Napoléon Aubin publicada no periódico canadense Le Fantasque em agosto de 1837

Dono de uma boneca inflável a que deu o nome de Dóris, com ela Doc vivia um tórrido relacionamento. Tendo cursado três cursos de graduação e deixado mais um pela metade, sempre que conhecia uma garota e iniciava a corte, ele costumava dizer que exercia a profissão de coveiro, pela qual dizia ter absoluta vocação e na qual se realizava plenamente como profissional. Perguntado por que mentia, nosso amigo dizia que era para ter certeza de que o possível amor que a cortejada viesse a desenvolver por ele era verdadeiro. Certa ocasião, tendo encontrado uma moça evangélica que muito falava na Bíblia, conseguiu convencê-la a se entregar a ele analisando o Cântico dos cânticos e o “crescei o multiplicai-vos”. Numa outra oportunidade, estávamos numa praia do Guarujá, conversando com duas moças que ali conhecemos, quando chegou um rapaz com pose de valente, perguntando-nos se estávamos incomodando as meninas, que provavelmente eram de seu círculo afetivo. Doc olhou ferozmente para o garotão, apontou-lhe dedo e soltou o vozeirão: “Aí, mano, toma cuidado, que eu sou inguinorante, tá ligado?!” O intrépido mancebo esbugalhou os olhos, pediu desculpas e deu no pé.

Nunca tendo tido a experiência um namoro, Doc mantinha uma vida afetiva que era uma interminável sucessão de brevíssimos casos com mulheres que “caçava” no metrô, no parque Ibirapuera, em clubes de provectas viúvas ou em “casas de massagem”. Contava sempre que sua maior fantasia sexual – magnífica experiência que o realizaria plenamente – seria estar debaixo de uma mulher de trezentos quilos, com celulites de oito centímetros e banhas entornando para os lados. Essa bem amada deveria aplicar-lhe sonoras bofetadas enquanto humilhava-o, gritando: “Você não é de nada!!! Você não é de nada!!!”

As depressões e agitações psicológicas de Doc são responsáveis por algumas de suas melhores histórias. Certa feita, profundamente deprimido e vítima de grande agitação interior, ele caminhava sozinho e sem rumo pelo perigoso centro de São Paulo, às 3h00 da madrugada. Só encontrou uma forma de lidar com seu drama: pegou um telefone público e ligou para um número qualquer. Do outro lado, o aparelho tocou doze vezes sem ser atendido. Até desligar. Doc não se deu por vencido. Ligou de novo para o mesmo número. Finalmente, após mais uns seis toques, alguém atendeu a chamada com voz sonolenta:

- Alô...

E Doc gritou a plenos pulmões: “Vá se foder, seu filho de uma puta!!!”

Feito isso, passaram por completo sua agitação interior e sua depressão.

De outra feita, caminhávamos pelo campus da universidade, e Doc sentia sua cíclica agitação interior de fundo um tanto neurótico. Por isso buscava um meio de dar vazão a sua aflição. Até que viu ao longe um grande tronco de árvore caído. Extremamente forte, Doc correu até lá, levantou o tronco no ar, correu com ele até uma elevação e, gritando a plenos pulmões, arremessou-o a uns quatro ou cinco metros de distância. O baque fez com que um grupo de cachorros vadios que ficava nas imediações saísse em disparada, em pânico. E Doc respirou fundo e reencontrou a paz interior.

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Buster Keaton em Nossa hospitalidade (1923)
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Por falar em cachorro, vivia pelo campus um bom número de vira-latas, em geral tratados com simpatia pela comunidade universitária. O líder desses animais era um grandalhão a quem todos os outros cães prestavam verdadeira vassalagem. Chamava-se Adão e era tão velho que se dizia ter sido ele que surgiu no mundo quando Deus pronunciou o “Faça-se o cachorro!”. Num final de tarde, Adão latia alto e forte. Seus súditos se recolhiam respeitosamente para um canto. Até que Doc, com seu vozeirão, começou a latir na direção do cachorro. Surpreso, o animal passou a latir mais alto e agressivamente, caminhando, por sua vez, na direção do humano. Este não se fez de rogado: também passou a latir mais alto e a ir no rumo de Adão. Todo mundo que passava pelo local parava para contemplar o original duelo, de tal modo que em pouco tempo formou-se uma pequena multidão. A contenda durou uns dois minutos. Resultado: após os litigantes se aproximarem latindo até mais ou menos um metro de distância, Adão, vergonhosamente batido em seu próprio campo de atuação, colocou o rabo entre as pernas, abaixou a cabeça e saiu de fininho, indo juntar-se aos de sua espécie. Os humanos espectadores, por sua vez, rebentaram em gargalhadas e aplausos para o seu brioso representante.

Esses mesmos cachorros costumavam dormir espalhados diante da portaria do prédio dos estudantes. De manhã, quando saíamos para nossas atividades, lá estavam eles. Até que Doc implicou com aquilo e resolveu acabar com a folga dos bichos. Pé ante pé, ele se colocou entre o grupo. De repente disparou a dar altos, agressivos e assustadores latidos de cachorrão bravo. O pânico foi tamanho entre a cachorrada que um deles, desorientado, se viu cercado num beco e tentou até subir pela parede. Desnecessário dizer que nunca mais voltaram a dormir na entrada do edifício. Mas, apesar de episódios como esse, nosso amigo era muito popular entre os cães, que o respeitavam e o adoravam.

Muitas vezes tive de espetar o dedo na cara de Doc e mandá-lo para os piores lugares, quando jogávamos futebol. É que, tendo pouca habilidade e sendo lento e pesadão, ele, que jogava na defesa, acreditava ser um verdadeiro Domingos da Guia, tendo a irritante mania de tentar driblar os atacantes adversários. Quantas vezes ele perdeu a bola e tomamos gol! Quantos pênaltis tivemos de cometer após suas trapalhadas.

Doc tinha obsessão pelos mistérios da natureza e pela figura divina. Um dia, após dar um golpe de caratê numa árvore, refletiu que “a natureza é um manto inconsútil”. Grande talento para as ciências exatas e a computação, Doc uma vez apareceu dizendo que estava desenvolvendo um modelo matemático que provaria a existência de Deus. Após uns cinco meses, encontrando uma falha no modelo, assumiu de vez o agnosticismo. Anos depois, conversando com um professor de Física, propôs-lhe que o orientasse num projeto de pesquisa que visava descobrir o moto-contínuo. O mestre arregalou os olhos, esquivou-se e saiu, sorrateiro...

O tempo correu. Terminados os meus estudos, tive de sair de São Paulo. Andei rodando um pedaço deste mundo a trabalho, sempre meio desenraizado. Doc foi para o Rio de Janeiro, trabalhar como engenheiro naval na Petrobras, onde parece estar bem. Lembrei-me dele há alguns dias, após ter de conviver com um grupo de pessoas prosaicas cujas idéias e cuja conversação me provocaram um tédio arrasador. Dele me lembro quando às vezes fico saturado da cultura livresca. Nesta época árida em que vivemos, seres como ele, macunaímicos e arlequinais, para lembrar dois termos caros a outro paulistano ilustre, são um oásis de alegria e humanidade em nossa convivência. Como esse mundo seria insuportável sem os extravagantes, os neuróticos, os mal-comportados, os originais!

sexta-feira, 11 de maio de 2007

Fim

As feministas já deram o que tinham que dar.

Curral de consumidores

Adriano de Paula Rabelo


Antigamente as cidades se orgulhavam de sua paisagem natural, de seu teatro, de seu estádio, de suas praças, enfim, de ambientes propícios ao encontro e à sociabilidade. Hoje, viaje-se pelas cidades grandes e médias do país e se verificará a inquestionável decadência da vida nos espaços públicos, arruinados pelas políticas elitistas, pela especulação imobiliária, pelo vandalismo e a violência.

Por incrível que possa parecer, muitas cidades hoje em dia têm como motivo de orgulho o seu shopping center. Uma vez que os espaços públicos se tornaram a terra de ninguém povoada pelos descartados da sociedade pequeno-burguesa – mendigos, delinqüentes, camelôs, malandros, migrantes despossuídos, prostitutas, moradores de rua, traficantes de drogas –, resolveu-se sair pela tangente, logo aparecendo os arquitetos do segregacionismo que criaram esse não-lugar chamado shopping center – assim mesmo, em mau inglês, como índice de modernidade.

A criação desse espaço urbano privado travestido de público se deu com a decadência e a substituição do conceito de “cidadão”, titular de direitos, pelo de “consumidor”, titular de certa quantidade de dinheiro e certo padrão de vida. Assim, o shopping foi concebido para ser, por si só, uma subcidade, pretensamente mais organizada, mais bonita, mais limpa e mais bem dotada de conveniências do que a cidade tradicional. Sobretudo mais segura. Essas “facilidades”, entretanto, não estão disponíveis para qualquer um. Os que por ali transitam devem dispor de uma renda que lhes permita consumir a ração de produtos e serviços formatados, homogêneos e de fácil ruminação oferecidos pelos seus estabelecimentos.


Parquinho da classe média


No interior dos shoppings, o gado consumista se sente a salvo dos problemas sociais, evadido da “ralé” que tenta cavar a sobrevivência nos antros em que vêm se transformando o centro e as periferias das cidades. A ambientação típica desse escoadouro de mercadorias é de uma banalidade modernosa: abuso de linhas retas, vidro e concreto, lojas coloridas, letreiros dando golfadas em inglês primário, salas de cinema exclusivamente dedicadas ao chorume de Hollywood, joguinhos eletrônicos, música ligeira, praças de alimentação com o pasto self-service ou combo... O lazer, cuja essência sempre esteve ancorada na gratuidade e num mínimo senso lúdico, tornou-se ele próprio, no âmbito dos shoppings, uma mercadoria.

As técnicas da publicidade vêm conseguindo homogeneizar as classes médias das sociedades modernas através de uma coerção agressiva para o gozo de consumir. O tempo livre, que outrora se preenchia com uma leitura, um passeio no parque, um bate-papo com amigos, um futebol de várzea, um deixar-se estar numa janela ou simplesmente um renovador não-fazer-nada, tornou-se o tempo do entretenimento como sinônimo de consumir algo. A partir dessa filosofia, quantos ansiosos contemporâneos não buscam remédios para suas angústias na compra sem fim de roupas e sapatos, na freqüência religiosa a salões de beleza ou a casas noturnas onde se louva a aparência bonitinha como mais uma espécie de objeto?

No shopping, desaguadouro da indústria de produtividade acelerada, tudo muda constantemente para permanecer como sempre foi. Esse ritmo, que condena e atropela os processos demorados, as conquistas maturadas e a contemplação da beleza, é o mesmo da globalização regida por Nova York. É também o ritmo e o comportamento da adolescência a comandar a cultura dos centros modernizados. Nossa sociedade parece haver regredido psicologicamente aos quinze anos. E quem já foi adolescente ou com eles convive sabe como essa etapa é de uma chatice suprema.

Para o curral dos consumidores, a cada dia milhares de cabeças se dirigem docilmente, acreditando se divertir em segurança. Nem imaginam eles que é na vertigem das ruas, onde pulsa a vida e ferve a cultura, que vamos encontrar caminhos que dêem sentido à construção de uma realidade mais humana e mais justa. Do contrário, a barbárie que nos ronda só irá aumentando a cota de sangue e estupidez que constantemente nos requisita.

sexta-feira, 4 de maio de 2007

Da sedução

Evocar os bichos da terra.

Amor X casamento

Adriano de Paula Rabelo

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Não sei se foi Oscar Wilde quem disse que qualquer homem pode ser feliz com qualquer mulher desde que não a ame. Sábia filosofia. Amar é uma coisa; partilhar a burocracia da vida com alguém, outra.

O amor com o tempo se torna exigente, possessivo, neurótico, sufocante e estúpido quando romanticamente se pretende transformá-lo em sustentáculo de uniões conjugais eternas e domá-lo no âmbito de um lar com toda a avalanche cotidiana de egoísmos, tédio e achaques de toda sorte. Por fim, o casamento por amor se transforma simplesmente nisto: uma comunhão de maus humores de dia e de maus odores de noite.

Sem dúvida o amor – essa invenção da antiguidade ocidental moldada, na sua forma atual, pelo pensamento burguês – nada tem a ver com o casamento e a estabilidade. O amor é instável, mutante, variando de intensidade e sendo sentido de formas distintas pelas duas partes. Está sempre a um passo de seu clássico oposto: o ódio.

Se tivessem chegado a se casar, Beatriz teria mandado o seu Dante para o Inferno, Heloísa teria castrado o seu Abelardo, Julieta teria envenenado o seu Romeu. Quase todo mundo hoje em dia se casa por amor. Em pouco tempo, no entanto, ou se separa ruidosamente ou, os mais pacientes, suportam com galhardia e nervos de aço os azedumes conjugais.

O amor é acidente existencial, é coisa que se vive e se frustra seja pela separação precoce dos amantes, que acalentarão pela existência afora a cristalização da vida de maravilhas que podia ter sido e que não foi, seja pela sua consecução num casamento fadado a se realizar como uma cotidiana prova de fogo para o equilíbrio emocional mesmo dos mais sensatos. A propósito, o romancista português Miguel Esteves Cardoso, autor de um livro com o título provocador de O amor é fodido, escreve:

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Um amor não pode pertencer a duas pessoas, por muito que o queiramos. Cada um tem o amor que tem, fora dele. É esse afastamento que nos magoa, que nos põe doidos, sempre à procura do eco que não vem. Os que vêm são bem-vindos, às vezes, mas não são os que queremos. Quando somos honestos, ou estamos apaixonados, é apenas um que se pretende. Tenho a certeza que não se pode ter o que se ama. Ser amado não corresponde jamais ao amor que temos, porque não nos pertence. (...) O amor é fodido. Hei-de acreditar sempre nisto. Onde quer que haja amor, ele acabará, mais tarde ou mais cedo, por ser fodido.

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Aí está: sendo “fodido”, o amor é essa permanente fonte de tormentos. Não me venham dizer que estou confundindo amor com paixão nem me falem na platitude de que a paixão passa e o amor fica, que o casamento se sustenta por um amor maduro e pacífico, etc., etc. Isso é conversa para burguesinho dormir. E o burguês, como se sabe, deve ser sempre açoitado.


Oráculos de bolo

A receita da infelicidade é, sem dúvida, casar-se com quem se ama. Nosso tempo, que tanto tagarela sobre o amor e tanto o glorifica como panacéia, parece ter se esquecido da amizade. Que tal pensarmos em algo mais brando, regado a compreensão e bom humor quanto se trata de estabelecer a sociedade que é ponto de partida para a composição da família, esta instituição que, na sua forma atual, é um covil de chatos? Que tal ampliar-se o conceito de família? Que tal algo isento do espetáculo da pieguice aparelhada em véu e grinalda, em terninhos e casacas; isento também da lenga-lenga dos padrecos ou dos seus congêneres? Que tal viajarmos pela maturidade e a velhice sem o fardo do amor corrompido?

Amor “é fogo que arde sem se ver”, é “infinito enquanto dura”. Tudo que arde é intenso mas fugaz, e todo infinito se consome num átimo. Sendo assim, amemo-nos intensamente com toda a alma, misturemos nossos corpos com loucura, urremos de gozo desenfreado. E continuemos a prometer sinceramente, dentro da nossa precariedade e finitude, que tudo será para sempre. Essas coisas são necessárias e fazem parte do jogo de nos iludirmos ante a perspectiva da morte, que tudo varre neste mundo. Mais cedo do imaginamos, a vida nos prega das suas peças, e o amor se vai, seja porque partimos, seja porque cometemos tolices, seja porque de fato jamais conseguiremos possuir o que amamos, seja porque simplesmente o amor cumpre o seu ciclo e acaba.

Portanto, que não se pense em amor quando se tratar de casamento. Basta que o outro seja alguém agradável ao diálogo e ao convívio (se possível aos olhos), de boa saúde e gênio não propenso aos chiliques. O casamento por amor seria uma instituição adequada a seres perfeitos e imperecíveis que se amassem da mesma forma e abarcassem o ser absoluto do outro. Nós, pobres símios, construiríamos uniões mais conformes à nossa natureza com as afinidades, a leveza e a solidariedade de uma relação de amizade.