sexta-feira, 29 de junho de 2007

As relações perigosas

O homem possui dois ouvidos porque tem uma boca.

Personalismo, informalidade e destino

Adriano de Paula Rabelo

Estou convencido de que neste país onde campeiam todos os horrores e onde somos feitos de palhaços cotidianamente só não enlouquecemos todos ou nos suicidamos coletivamente por causa de nossa forma de encarar a vida e de nos relacionar. Sérgio Buarque de Holanda tornou-se célebre por sua teoria do brasileiro como um “homem cordial”, aquele que se sente muito pouco à vontade ao entabular relações impessoais e muito formais com os outros e que age pelo sentimento e pela emoção (“cordial” vem do latim cor, “coração”). O famoso historiador via com grande pessimismo esse traço fundamental de nosso caráter, que está na base de muitas de nossas grandes mazelas, como a confusão entre o público e o privado, a aplicação das leis conforme a qualidade de seus infratores, o populismo, a péssima representação das camadas sociais desfavorecidas no governo. No entanto, como tudo tem ao menos dois lados, nosso personalismo e nossa informalidade também fundamentam o melhor daquilo que nossa civilização tem produzido.

Historicamente temos resolvido nossos conflitos de forma carnavalizada, recusando-nos a cultivar ódios, rancores e traumas seculares. Com isso, a despeito de as grandes transformações de nossa sociedade terem se processado a partir de acordos para reacomodar as coisas conforme os interesses das elites, acredito que, sem desprezar o passado, somos uma coletividade voltada para o presente e o que podemos nos tornar no futuro. Produzimos uma cultura ímpar que nada tem de inferior à do Velho Mundo. Temos unidade lingüística e de sentimento nacional num território muito vasto. Nossa visão de mundo tende à ironia e ao picaresco. E inventamos o “jeitinho brasileiro” como forma de navegação na burocracia dos donos do poder.

De fato, buscamos sempre lidar com pessoas e não com funções, não com terninhos e gravatinhas, não com batinas, fardas ou decotes. Claro que vivemos numa sociedade rigidamente hierarquizada e supremamente injusta. Só não saímos por aí cortando cabeças e chupando o sangue de nossa oligarquia brega, que pensa que o povo é para ser gasto como combustível, porque até mesmo nela enxergamos o ser humano com todas as suas contradições. Mas ela que tome cuidado!

Nossa forma de relacionamento, diferentemente das culturas imperialistas, é a que reconhece no outro um nome e uma história. Preservamos uma delicadeza e uma receptividade no trato que o Velho Mundo, por exemplo, em sua esclerose e em sua burrice, já perdeu há muito tempo. Por isso, talvez nunca nos sintamos tão brasileiros como quando estamos no exterior, especialmente no chamado Primeiro Mundo. Lembro da história de uma amiga paulistana de formas exuberantes que foi passar uma temporada de estudos na Alemanha. Certo dia em que a saudade do Brasil apertava, ela caminhava devagarinho, olhando para o lado de forma furtiva, perto de uma construção onde umas duas dúzias de homens trabalhavam. Não lhe fizeram nenhum gracejo, não lhe concederam nem a esmola de um olhar. Que fez ela? Sentou-se num meio-fio e chorou copiosamente.



Operários (1933) – Tarsila do Amaral


Vejam os nomes dos jogadores da Seleção Brasileira. Os de outros países são conhecidos publicamente por um imponente nome de família. Os nossos por apelidos ou pelo primeiro nome. Nossas maiores glórias se tornaram conhecidas não somente por apelidos como por seus nomes dos tempos de criança: Pelé, Garrincha, Zizinho, Didi, Vavá, Jairzinho, Dadá, Ronaldinho, Kaká.

Veja a qualidade da nossa ironia: pessoas que se amam se insultam ironicamente. Assim, quando dois amigos se encontram é quase certo que se “agredirão”, um xingando de forma cordial as origens, a sexualidade ou o caráter do outro. Logo depois se abraçarão estrepitosamente e iniciarão a conversa. Nosso senso de humor freqüentemente é autodepreciativo, na base de “o brasileiro não tem jeito mesmo” ou “só no Brasil mesmo”, o que faz do brasileiro e do Brasil entidades excepcionais. Um estrangeiro que visse e ouvisse tais coisas por certo ficaria muito intrigado ou até mesmo chocado. Mas talvez seja por essa auto-ironia que nossa história é relativamente isenta de nacionalismos infames.

Lembro-me de uma ocasião, há alguns anos, num ponto de ônibus. Era fim de tarde. As pessoas retornavam do trabalho com ar sério e cansado. A presença, entre outros, de um anão dava um tom de excepcionalidade ao pequeno aglomerado. Até que chegou, meio cambaleante, a figura destemperada de um bêbado. Ao ver o anão, o ébrio apontou-lhe de repente o dedo e disparou: “O que é que você vai ser quando crescer?” Por mais politicamente corretas que fossem as pessoas ali, todos, inclusive o anão, dispararam a rir daquela impertinência tão tipicamente brasileira.

Quem nunca ouviu, numa fila qualquer, duas senhoras a conversar longa e prazerosamente sobre suas diversas doenças e achaques, numa competição de sofrimentos? E nossa incapacidade de dizer não? E nossa mania de nos despedir e continuar no ambiente, tomando parte na conversa e na ação? E nosso convite retórico para que outrem passe por nossa casa “qualquer dia desses”? E nossa arte marcial dançada?

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Soltando balão – Ailton das Neves


Paulo Prado considerava que somos um povo triste. Os estrangeiros, por sua vez, invariavelmente nos vêem como alegres viscerais. Por certo nos situamos em algum lugar entre tais extremos, ou os sintetizamos. Falei acima da ironia, esse humor dos tristes, e do picaresco, esse humor troppo allegro, como fundamentos de nossa visão de mundo. Nosso lado triste advém de nossa histórica incapacidade de, numa natureza muito generosa, proporcionar dignidade de condições de vida e cidadania efetiva para a maior parte da população. Nossa porção alegre decorre da consciência de havermos construído todo um sistema civilizatório original e único, amalgamando distintos e conflitantes universos de cultura. A fecundidade daí resultante nos dá esse sentimento permanente de que, apesar de todos os horrores e das palhaçadas nacionais, temos uma muito melhor destinação histórica a realizar.

sexta-feira, 22 de junho de 2007

Tempos

Os números não mentem já.

Pungência e força de Frida Kahlo

Adriano de Paula Rabelo

No próximo dia 6 de julho, fará cem que nasceu, na periferia da Cidade do México, uma artista e uma personalidade das mais fascinantes da história da pintura: Frida Kahlo. Sua vida e sua obra foram profundamente marcadas pelo acidente que ela sofreu aos dezoito anos e também por seu relacionamento amoroso com o pintor Diego Rivera. Grande parte da obra de Frida é composta por auto-retratos em que ela reelabora expressivamente seu sofrimento e sua paixão.

Gostaria de me deter aqui num quadro da pintora, obra inesgotável que sintetiza a sua história. Trata-se de “O Hospital Henry Ford ou A cama voadora”, de 1932.

Como se sabe, em 1925, no choque entre o ônibus em que viajava e um bonde, Frida Kahlo teve a região da pélvis trespassada por uma barra de ferro que rompeu-lhe a coluna vertebral em três lugares na região lombar, além de fraturar-lhe vários outros ossos. Essa fatalidade mudou completamente o curso de sua existência, fazendo com que fosse abandonado seu projeto de tornar-se médica. Como agravante, ela foi informada de que jamais poderia ter filhos através de parto normal, recebendo a recomendação de não engravidar.

Cinco anos depois, no entanto, já casada com Rivera, Frida engravidou e teve de realizar um aborto por razões médicas. Em 1932, por ocasião de uma temporada de trabalho do pintor nos Estados Unidos, ela ficou grávida novamente. A despeito das recomendações dos médicos e da oposição de Diego, Frida resolveu levar adiante a gestação e ter o filho. Foi uma tremenda frustração quando, poucos meses depois, ela perdeu a criança que tanto desejava. Essa experiência traumática foi retratada posteriormente pela pintora no quadro a ser brevemente analisado aqui.


O Hospital Henry Ford ou A cama voadora (1932) – Frida Kahlo


A obra mostra Frida Kahlo completamente sozinha, deitada no leito do hospital, localizado na cidade de Detroit, no momento em que ocorre a perda do filho. A cama é bastante grande em relação a seu corpo, como a ressaltar sua pequenez, fragilidade e desamparo. A completa nudez da artista – bem como sua solidão – remete a um momento essencial, de encontro com seu eu profundo, em que todas as máscaras sociais caíram. Inscrições na frente e na lateral do leito situam com precisão o acontecimento no tempo e no espaço: “Julho de 1932, FK”, “Hospital Henry Ford, Detroit”.

Frida está bem à beira da cama, significativamente bastante próxima de uma queda. Tem a barriga protuberante de sua gravidez de três meses. O lençol branco sob seu corpo está muito ensangüentado, não somente indicando a perda física do bebê, mas sugerindo o esvair-se da própria vida da artista. De seu olho esquerdo escorre uma enorme lágrima, o que por si só representa a imensa dor de uma mãe pela perda do filho. O rosto escuro e sombrio exprime toda a desesperança que ela traz na alma.

Pela mão esquerda da pintora – também representada em grande tamanho – passam três fitas vermelhas que lembram veias ou artérias, ligando três objetos que flutuam no ar a outros três posicionados no chão, todos eles símbolos de sua gravidez falhada e de sua impossibilidade de ser mãe. No ar está um modelo anatômico da parte inferior da coluna vertebral e do sistema reprodutor feminino que se liga a uma pélvis óssea no chão, à direita, testemunhos da causa corporal do aborto sofrido. Em seguida, um feto do sexo masculino, também de enorme tamanho, como a representar sua importância no universo afetivo da mãe, está ligado a uma flor violeta murcha no chão. O bebê morto e a flor sem nenhuma vitalidade são imagens eloqüentes da perda sofrida pela artista. Por fim, um caramujo, animal que nas culturas indígenas mexicanas representa a concepção, a gravidez e o nascimento, liga-se a um esterilizador a vapor tal como os que eram utilizados em hospitais nos anos 1930 para selar tanques de gás ou de ar comprimido. Provavelmente Frida fez uma associação entre o mecanismo de selar e seu próprio sistema reprodutor defeituoso, que não lhe permitia completar com êxito uma gravidez.

Note-se ainda que ela está deitada no lado esquerdo da cama e que toda a cena é vista em referência à esquerda da personagem central. Essa insistência no lado esquerdo denota a natureza gauche de Frida, muito especialmente no que tange a sua impossibilidade de levar uma vida “normal”.

A solidão, a vulnerabilidade e a desolação da pintora são levadas ao paroxismo quando se observa a paisagem em que ela está inserida. No primeiro plano, à parte do horizonte industrial e desprovido de qualquer referência humana representado ao fundo, está uma planície desértica em completa aridez. Nessa planície, que reflete o estado de espírito de Frida, a cama aparenta flutuar, razão do título do quadro. Já o complexo industrial, reino do progresso tecnológico e da competição capitalista, em sua frieza, contrasta grandemente com a tragédia da artista, com sua destinação humana. O céu nublado e cinzento parece anunciar a iminência de chuva.

Com a passagem dos anos, aumenta sempre mais a minha admiração por Frida Kahlo, que é minha pintora favorita. Como poucos artistas, ela foi uma poeta das tintas e uma poeta da vida. Ultrapassou grandes dores e grandes perdas, amou superiormente seu homem e por ele foi amada, realizou uma obra de arte original e eterna através do diálogo com seus traumas, juntou expressionismo e cultura indígena mexicana num amálgama perfeito, atuou politicamente contra todas as formas do totalitarismo, foi uma precursora do alargamento dos horizontes da mulher. Acima de tudo, foi uma artista e um ser humano excepcional que superou graves limitações por meio de uma sensibilidade superior e um imenso amor pela vida.

sexta-feira, 15 de junho de 2007

Lábios e lábias

Uma bela boca vale mais que belos ditos.

Saudades de Montevidéu

Adriano de Paula Rabelo

Nos anos de 2005 e 2006, um tanto por acaso, fui trabalhar em Montevidéu, ensinando Português e Cultura Brasileira na Universidad de la República. Quando cheguei, conhecia muito pouco sobre o Uruguai e sua capital, onde vive a metade dos habitantes do país. As primeiras impressões foram boas, apesar de haver encontrado um país muito mais empobrecido do que eu imaginava.

Fui morar no bairro de Pocitos, a uma quadra das margens do Rio da Prata e da Rambla, a avenida que contorna a orla do colossal volume de água que separa o Uruguai da Argentina. Com o correr dos dias, fui me ambientando, fazendo longas caminhadas pelas ruas, visitando seus museus e parques, transitando por sua periferia, ouvindo sua música. E com o início de minhas atividades na universidade, fui conhecendo as pessoas.

Muitas coisas me marcaram na passagem por Montevidéu. Primeiramente a paisagem, tanto a urbana como a humana. A cidade se divide em duas, bem delimitadas geograficamente: a moderna e a “velha”. Esta, com suas construções de séculos passados, plena de história, concentra boa parte do roteiro turístico e noturno da capital uruguaia; aquela, a despeito de ainda incluir em diversos pontos construções antigas, possui todas as características das metrópoles contemporâneas, com seus arranha-céus e sua agitação nas vias mais movimentadas. Quase que uma mesma árvore – alta, imponente, que solta umas pluminhas no verão – decora todas as ruas da parte moderna. Contornando a Cidade Velha, o centro e alguns dos bairros de classe média e alta, está a Rambla, ao longo da qual há sempre grande concentração de pessoas se encontrando, praticando esportes e se divertindo diante do majestoso rio-mar.


Uma região antiga na área central de Montevidéu

Na região onde morei, marcaram-me as corridas de fim de tarde na Rambla, quase sempre muito agasalhado para enfrentar o vento gelado que vem do rio; o belo busto de Tolstoi próximo à embaixada da Rússia, onde eu sempre passava para reverenciar o grande escritor; e um amplo gramado junto à baía de Pocitos, onde eu sempre ia jogar futebol.

Quanto às pessoas, considero que elas são sem dúvida a grande riqueza do país. Os uruguaios são, em geral, bem diferentes do estereótipo que se consagrou do brasileiro. Mais silenciosos, o cenho mais fechado, extremamente orgulhosos, cordiais, firmes e gentis. Sua forma de falar a língua espanhola é muito peculiar à região platina, com uma musicalidade própria, mas macia e harmônica que a fala dos espanhóis, por exemplo. Claro que estou sendo um tanto superficial e impressionista nestas generalizações, mas aqui estou apenas esboçando os traços mais fortes que me ficaram da convivência com eles.

Em boa parte do ano, o tempo em Montevidéu anda meio cinzento, sopra um vento cortante e chegam frentes frias muito mais intensas que as enfrentadas no sudeste brasileiro de maio a agosto. Por isso, a longa seqüência de dias muito frios foi sofrida para alguém como eu. Mas essas condições climáticas me parecem combinar perfeitamente com o aspecto e o espírito da cidade. O correr dos meses teve o efeito de ir me adaptando e, por fim, não me incomodando com as baixas temperaturas e as especificidades climáticas de lá. Mas, em agosto de 2005, a entrada de um ciclone na cidade foi assustadora. A tormenta quase me apanhou na rua, num fim de tarde. Uma ventania de quase duzentos quilômetros por hora causou mortes e muita destruição. Em casa, fiquei ouvindo o assobio dos ventos, o estrondo das águas do Rio da Prata contra os paredões, os grandes pingos da chuva, a eletricidade que fugia...

A comida uruguaia é sempre uma orgia de carnes de todo tipo com alguns acompanhamentos mais leves. Apesar de em geral não muito saudável, é muito saborosa, fazendo parte da tradição gauchesca, que é vigorosa inclusive em seus sabores.

A qualidade de vida na capital me pareceu excepcional para os padrões de uma metrópole latino-americana. Os níveis de violência são baixos, o acesso das pessoas à educação e à saúde é bastante amplo. Porém o desemprego entre os jovens é enorme, muita gente emigrou ou pretende emigrar, o setor industrial do país não vai bem. Os mais velhos sempre mencionam um tempo de vacas gordas – nos anos 50 e 60 especialmente – em que o Uruguai foi uma espécie de paraíso fiscal. Muito dinheiro circulava pelo país e havia abundância. Entretanto, o capital especulativo acabou indo embora e, como sempre acontece, deixou alguns ricos e muitos deserdados.


A baía de Pocitos

Foi nesses tempos de bonança que o Uruguai venceu o Brasil na final da Copa do Mundo de 1950, fato que ainda hoje marca profundamente o caráter nacional uruguaio. Como ficou comprovado pelos ajustes de contas feitos após a partida, naquele dia 16 de julho o Brasil entrou em campo como apenas um time; já o Uruguai entrou como uma nação. Sob a liderança do gran capitán Obdulio Varela, com os brios eriçados pelo desrespeito com que foram tratados pela imprensa brasileira, os uruguaios nos venceram numa reatualização do mito de Davi e Golias. Em sua mitologia, a épica atuação de seus jogadores naquele dia lhes deu uma promissora perspectiva: se puderam derrotar um gigante favoritíssimo, do que mais não seriam capazes?

A vida noturna em Montevidéu me impressionou vivamente. Todos os programas noturnos começam muito tarde. Alta madrugada ainda há sempre grande movimento nas ruas centrais e nos bairros onde se concentram restaurantes, cinemas e casas noturnas. Uma vez cheguei de viagem às três da manhã. Muitos estabelecimentos estavam abertos, igrejas regurgitavam em plena missa e até crianças brincavam, ainda acordadas. Eu, que não sou de varar noites, não aproveitei muito dessa euforia noturna.

Lembro-me de que, quando deixei o Uruguai, muitos ex-alunos e amigos foram se despedir de mim. Foi um momento de emoção. Senti-me valorizado e recompensado. Depois disso, retornei várias vezes para cursos intensivos. Os amigos sempre se reuniam e conversávamos sobre nossos projetos, sobre tudo e sobre nada. Era o prazer do reencontro.

Senti hoje saudades de Montevidéu ao folhear um álbum de fotografias.

sexta-feira, 8 de junho de 2007

Da impiedade

Para que se libertem, os humilhados e ofendidos precisam aprender a humilhar e a ofender.

Canalhice naturalizada

Adriano de Paula Rabelo


Nas últimas décadas uma avalanche cotidiana de corrupção nos três poderes vem conseguindo insensibilizar as pessoas em relação ao problema, que talvez seja o mais grave enfrentado pelo Brasil contemporâneo, uma vez que afeta diretamente as questões mais essenciais ligadas à educação, à saúde, à segurança pública, à capacidade de investimento do país em sua infra-estrutura. Pior, a canalhice vem passando por uma espécie de naturalização, sendo reconhecida pelo senso comum como válida e como parte do jogo político. Como nossa Justiça jamais conseguiu punir os donos do poder econômico, dissemina-se entre a população um sentimento de impotência e uma perigosa tolerância em relação à corrupção, abrindo espaço para que o cinismo se institua em larga escala, tanto na esfera pública quanto na privada. A partir daí, vem se consagrando cada vez mais uma concepção de que, embora as coisas devessem ser diferentes, elas são assim mesmo. Por isso, escolado pelos dráculas de Brasília, o cidadão comum passa a acreditar que todo mundo tem seu preço e que “a ocasião faz o ladrão”, que certos usos e costumes escusos estão consagrados e não há como escapar deles para se atingir objetivos no campo do empreendedorismo político e econômico.

Na peça Otto Lara Resende ou Bonitinha mas ordinária, de Nelson Rodrigues, o personagem Peixoto, ele mesmo um crápula, exprime bem a naturalização do mau-caratismo no senso comum, chegando ao ponto de identificar a canalhice como um traço distintivo do caráter nacional ao dizer que “no Brasil quem não é canalha na véspera é canalha no dia seguinte”. Mais interessante ainda é outro personagem de Nelson, figura muito freqüente em suas crônicas, “Palhares, o canalha”, cujo maior feito, alardeado orgulhosamente por ele próprio entre os amigos, foi beijar o pescoço da cunhada num corredor da casa em que habitava com toda a sua família. A partir de então, Palhares passa a ser conhecido como “o que não respeita nem cunhada”, é invejado por muitos e promovido no emprego.

Tais personalidades e acontecimentos típicos do mundo criado por Nelson Rodrigues nunca estiveram tão em evidência neste país em que os maiores disparates são possíveis. Um exemplo entre centenas que poderiam ser aqui arrolados: em 1997, o deputado federal José Gomes da Rocha, do Partido Social Democrático de Goiás, legenda posteriormente incorporada ao PTB, utilizou sua verba de gabinete para contratar sete jogadores de futebol e um supervisor para o Itumbiara Esporte Clube, time que disputava a primeira divisão do campeonato daquele estado. Um jornalista do Correio Braziliense, Lúcio Vaz, publicou uma reportagem-denúncia sobre o caso, provocando a suspensão do deputado pelo período de um mês. Passada a suspensão, no entanto, José Gomes da Rocha encontrou o mesmo jornalista no café da Câmara. O que então se passou é digno de “Palhares, o canalha”: o deputado foi na direção de Lúcio Vaz, levantou a mão como se fosse agredi-lo, mas subitamente abaixou-a para cumprimentá-lo, dizendo com efusão: “Muito obrigado, você garantiu a minha reeleição”. Explicou, então, que várias enquetes feitas pelas rádios de Itumbiara indicaram que cerca de 90% da população aprovava o que ele havia feito. E, de fato, na eleição do ano seguinte o deputado foi reeleito com mais de 20 mil votos a mais que na eleição anterior.

Esse carisma do canalha, bem como a tolerância em relação aos meios escusos para se atingir os fins da ambição individual, é um fenômeno que está clamando por estudos mais acurados da nossa sociologia. A concepção do sucesso como um acúmulo cada vez maior de dinheiro, poder e influência tem feito com que, num país onde quase todos acreditam nos fundamentos da ética cristã e gostam de se exibir como seus paladinos, regras mais pragmáticas que desconhecem a culpa e autonomizam o livre-arbítrio sustentem a ação efetiva de muita gente.


A outra face da canalhice naturalizada


O canalha nacional, muito especialmente aquele que vampiriza o Estado, serve-se de toda uma estrutura montada para facilitar-lhe a ação e para que ele escape de condenações judiciais nos casos que chegam a ser investigados e em que processos chegam a ser abertos. Servem-se de suas abomináveis imunidades, fazem um silêncio estratégico até que abaixe a poeira ou tentam explicar o inexplicável com sua aura de simpatia e cordialidade, negam tudo ou ficam indignados com o maior dos descaramentos, escalam seus advogados para pedir seus providenciais habeas corpus... Com o correr dos dias e dos novos escândalos que vêm para o proscênio do noticiário, tudo se esquece e o pulha vai viver a mais regalada e feliz das existências. Como contrapartida, aumenta-se a carga tributária, decai ainda mais a qualidade de vida das classes desprotegidas, a saúde e a educação públicas mergulham na indigência, dissemina-se a delinqüência, mais e mais excluídos povoam as ruas.

Há décadas as vozes da demagogia vêm fazendo uso da palavra “reforma”. Mas o máximo que conseguem promover – com o habitual estardalhaço – é o já consagrado “mudar para ficar tudo como está”. No caso específico da corrupção, se houvesse um mínimo de dignidade em nossa vida pública, ela seria considerada como crime hediondo e imprescritível, com penas similares às correspondentes a homicídio doloso. Tudo que foi furtado ao patrimônio público ou empregado em benefício de indivíduos ou quadrilhas teria de ser restituído com altos juros. Mas essas formas de coerção talvez jamais se tornem realidade num país de tão brutal diferenciação de classes, em que a casta senhorial legisla em causa própria, aplica as leis e as executa de forma a perpetuar-se como proprietária do Estado.

Lembramos acima a peça Bonitinha mas ordinária, que gira toda em torno de uma frase atribuída por Nelson Rodrigues ao escritor Otto Lara Resende: “O mineiro só é solidário no câncer”, ou seja, somente no limiar da morte o ser humano é capaz de comover-se com o sofrimento alheio a ponto de solidarizar-se com seu infortúnio. Pelo volume e a qualidade da corrupção que nos bombardeia diariamente – e que já se manifesta tranqüilamente nos níveis mais rasteiros –, talvez pudéssemos concluir que o mineiro não é solidário nem no câncer. Mas o canalha, como o próprio Nelson reconhecia, “é sempre um cordial, um ameno, um amorável”. Ninguém é integralmente calhorda. Dizem que Maluf é bom marido, que Fernando Henrique possui respeitabilidade intelectual, que José Dirceu é bom pai, que Collor era um bonitinho com pose de super-herói. Antônio Carlos Magalhães chorou como uma mamma siciliana na morte de seu filho deputado. Essas qualidades, cujas manifestações situam-se no âmbito individual e familiar, recebem alta promoção por parte da grande imprensa reacionária, humanizando os canalhas e aproximando-os da pessoa comum. Daí para sua absolvição moral é um pulinho. E daí para uma assimilação da canalhice como coisa aceitável é quase automático. E os vermes proliferam-se.

sexta-feira, 1 de junho de 2007

Nós

É necessário continuar lançando pérolas aos porcos, nem que seja só para machucá-los.

Uma modinha do século XIX

Adriano de Paula Rabelo
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A canção de amor de apelo popular pressupõe quase sempre que o sujeito lírico assuma uma postura de certa ingenuidade. Na tradição musical brasileira, um gênero marcou profundamente todo o século XIX e os primeiros anos do XX: a modinha. Tal gênero, cujas origens remontam ao século XVIII, conheceu grande voga tanto nos salões bem comportados das classes abastadas, executado em saraus, quanto nas ruas, composto e cantado em especial por mulatos, sendo por muito tempo executado em serenatas. O auge da modinha ocorreu durante a época do Império, período com que ela se identifica bastante.

Na segunda década do século XX, as transformações urbanas e o avanço da tecnologia de reprodução dos sons acabou por modificar profundamente o ambiente em que a modinha se desenvolveu e se estabeleceu. Além disso, o advento do samba e das primeiras gravações representou o fim da modinha e dos eventos que proporcionavam a sua performance.

Os títulos de clássicas modinhas, alguns de um saboroso pitoresco, dão uma boa idéia de seu universo e de seus temas recorrentes, sempre temperados por muito lirismo, sentimentalidade e, às vezes, humor: “Tão longe, de mim distante”, “Quis debalde varrer-te da memória”, “Lembranças do nosso amor”, “Belas baianas”, “Vai cruel em braços doutros”, “Prazeres que eu não sonhava”, “Cozinheiro art nouveau”. Uma simples atenção ao léxico desses títulos basta para nos remeter de imediato a um tempo antigo, em que as formas de expressar os sentimentos eram diversas daquelas consagradas pela vertente predominante do Modernismo, movimento que renovou todo fazer artístico no Brasil.

Dentre todas as modinhas, talvez a mais célebre seja “Casinha pequenina”, de autor desconhecido, composta no final do século XIX e gravada em disco pela primeira vez em 1906, por Mário Pinheiro. Posteriormente ela faria parte do repertório de um variado número de intérpretes, como Bidu Sayão, Beniamino Gigli, Paraguassu, Sílvio Caldas, Radamés Gnatalli, Cascatinha e Inhana, Nara Leão e Rogério Duprat. Recentemente tive acesso a uma bela interpretação da dupla belo-horizontina Renato Motta e Patrícia Lobato. Detenhamo-nos brevemente sobre a letra:

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Tu não te lembras da casinha pequenina
Onde o nosso amor nasceu?
Tu não te lembras da casinha pequenina
Onde o nosso amor nasceu?
Tinha um coqueiro do lado, que coitado
De saudade já morreu.
Tinha um coqueiro do lado, que coitado
De saudade já morreu.

Tu não te lembras das juras e perjuras
Que fizeste com fervor?
Tu não te lembras das juras e perjuras
Que fizeste com fervor?
Daquele beijo demorado, prolongado
Que selou o nosso amor.
Daquele beijo demorado, prolongado

Que selou o nosso amor.

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Construída com o emprego de diversos topoi do romantismo, a canção possui como que ambientação e clima de romance de José de Alencar, transportando-nos para o reino da pessoalidade, do subjetivismo, do emocionalismo. Dois elementos paisagísticos se destacam em “Casinha pequenina”: a própria casinha e o coqueiro. Temos aí o refúgio da civilização e a integração na natureza. Desligando-se da sociedade e voltando-se para a própria interioridade, o sujeito da canção se coloca praticamente na condição de centro do universo. Os dois elementos que marcam a paisagem remetem de imediato à geografia brasileira, valorizando a cor local, os aspectos pitorescos de nossa nacionalidade.


“Idílio” – Tarsila do Amaral (1886-1973)

Estabelecido o local onde os dois amantes vivenciaram seus grandes momentos – um verdadeiro mundo particular –, a emoção transborda num apelo à lembrança dos eventos que marcaram seu relacionamento: as “juras e perjuras” feitas com “fervor” e, principalmente, o “beijo demorado, prolongado” que sacramentou seu amor, sentimento que é exaltado e elevado à condição suprema de quintessência da vida.

A simplicidade do vocabulário e da construção dos versos, bem como o tom menor da dicção poética, aproxima o texto da linguagem coloquial. Tais elementos, juntamente com a dupla métrica, denotam uma grande liberdade de criação e uma recusa a padrões consagrados de construção textual.

Como se viu, o sujeito da canção apela para a memória da pessoa amada, referindo-se a elementos paisagísticos e a acontecimentos localizados no passado. Por certo estamos diante de um amor que não se realizou na continuidade e na felicidade prometida. A corroborar essa interpretação estão a necessidade de se apelar para a lembrança do que passou e, em especial, o triste destino do coqueiro, que significativamente morreu de saudade. Ademais, alguém que apela à lembrança de juras e perjuras, só o faz porque elas não foram cumpridas. Temos aí uma materialização do chamado mal-do-século, ou seja, a impossibilidade de realização de nossas mais puras aspirações neste mundo hostil. Por isso um tom de melancolia perpassa toda a canção.

Mário de Andrade certa vez definiu a modinha como “um suspiro de amor”. Esse que foi historicamente o primeiro gênero a se definir na música popular brasileira, como se viu, deixou de existir no início do século XX, mas deixou larga influência em nossa música, seja nos transbordamentos românticos do samba-canção, seja no lirismo mais comedido da bossa nova, seja no estabelecimento de posturas e temas que se tornaram clássicos na canção de amor brasileira.