sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Leviatã

O Estado é um estado.

Vetusta juventude

Adriano de Paula Rabelo


Décadas atrás, um grupo de arqueólogos encontrou, na região da antiga Mesopotâmia, hoje Iraque, uma placa de pedra do século III a.C. com a seguinte inscrição: “O adolescente considera tudo o que é mais antigo do que ele como arcaico e obsoleto. Ao passo que tudo seu é novo e criativo, algo que sem dúvida dará certo. Essa praga só pensa em sexo e contestação.”

Rolaram-se os séculos, e os adolescentes nunca foram levados muito a sério, sendo deixados para amadurecer – sob os auspícios do dinheiro dos pais – em decorrência de muitas tolices cometidas daí até os vinte e poucos anos, no máximo, quando se casavam, adquiriam ares circunspectos e iam tocar a vida como respeitáveis pais de família.

Dois mil e trezentos anos depois, a obtusidade juvenil continua a mesma. Porém, vivemos um fenômeno inédito na história da cultura: agora são os adultos, e mesmo os velhos, que estão se convertendo à adolescência.

Em nossa época, ser jovem se tornou um imperativo. Com isso a maturidade e a velhice, antes sinônimos de serenidade e sabedoria, nunca conheceram tamanho desprestígio. Pais e filhos se comportam como colegas de geração em aventuras de mocidade, indivíduos já grisalhos exibem-se socialmente na companhia amantes semi-adolescentes, senhoras e senhores à beira dos cinqüenta anos submetem-se a cirurgias plásticas e tratamentos que lhes extirpem rugas e cabelos brancos, anciãos se vestem à moda dos astros de rock. No embalo da onda jovem, a indústria lança toda sorte de mercadoria associada ao “frescor”, à “radicalidade”, ao “vigor”, à “renovação”, à “esportividade” que geralmente se associam à cultura juvenil.

Há que se reconhecer que as melhorias das condições de vida e os avanços das técnicas para se cuidar do corpo modificaram as referências etárias. Se Balzac fosse nosso contemporâneo, sua famosa mulher de trinta anos teria hoje uns quarenta e cinco, talvez cinqüenta. Há que se reconhecer ainda que a passagem do tempo realmente não deve significar uma progressiva retirada da vida social e produtiva para os confins dos quartinhos nos fundos das casas dos filhos, levando-se uma existência estagnada, plena de achaques, entregando-se à nostalgia e à melancolia. Porém uma vida alternativa a essa pasmaceira está longe de passar pela integração acrítica ao mundo adolescente. A indefinição de papéis, o esvaziamento da experiência, o anacronismo dos comportamentos freqüentemente descambam para o grotesco e o ridículo.


A inépcia da idade valorizada


A mim me parece que as veleidades juvenis incompatíveis com senhoras e senhores cujas idades tradicionalmente os qualificariam para a maturidade constituem muito mais uma pose, uma atitude prêt-à-porter numa época que supervaloriza a juventude. E o que se evidencia nessa supervalorização é uma entidade supostamente em plena disponibilidade para o gozo permanente, quase sempre associado ao consumo roupas, cremes, acessórios e estilos de vida que compõem a receita para ser jovem. Aceita essa alienação, tanto por parte de indivíduos de escassa experiência como por parte de seus imitadores de idade mais avançada, nada mais se vislumbra além da velha estagnação, em geral enfrentada à base do consumismo. Onde se perderam os impulsos criativos e a ação contestatória dos jovens, agora engajados apenas em lutas de feição individual, no máximo familiar? Onde foi parar a profunda significação da experiência e da memória como fundamentos de uma intersubjetividade que proporcionava coesão social e sentido para as lutas de caráter político?

O desprezo pelo passado e a indiferença pelo futuro estão diretamente relacionados ao esvaziamento do presente. Nesse transcurso sem utopias nem valores universais, em que cada um pretende utilizar a relatividade das coisas em seu próprio favor, o vácuo existencial tem sido enfrentado, em geral, através da ilusão da eterna juventude. Que sentido terá a busca de caminhos na barafunda contemporânea sem a iluminação da lucidez, da ponderação e do conhecimento vivido pelas pessoas maduras? Sob todos os aspectos, esta cultura da juventude compulsória é tão esclerosada quanto seria a de uma civilização enrijecida que sacralizasse a velhice e nos coagisse a todos para que assumíssemos a pose de velhotes venerandos como um valor em si mesmo.

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Parlamentaríssimo

A língua transborda numa reunião de mulheres.

Falar brasileiro, escrever português

Adriano de Paula Rabelo


A certa altura da famosa rapsódia de Mário de Andrade, seu Macunaíma menciona a existência de duas línguas utilizadas paralelamente no país: o brasileiro falado e o português escrito. Lá se vão quase oitenta anos desde a publicação das peripécias do herói sem nenhum caráter, e a distorção apontada por ele permanece intacta como um dos mais graves instrumentos de preconceito e segregação social.

Como no Brasil tudo muda apenas para permanecer como sempre foi, está para entrar em vigor, no início do ano que vem, mais uma reforma ortográfica de nossa língua, a quarta em menos de cem anos. A justificativa desta vez é a unificação da escrita em oito países que falam “português”.

Tramada por diplomatas no âmbito de uma insignificante organização denominada Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, a reforma que nos será impingida desconsidera alguns aspectos fundamentais: falamos uma língua estruturalmente diferente do idioma dos portugueses, mais de 80% dos falantes chamados “lusófonos” vivem no Brasil, nos países africanos e asiáticos que têm o português como língua oficial somente uma diminuta elite realmente o conhece e o emprega, o quinto idioma mais falado no mundo é este utilizado diariamente por cerca de 200 milhões de brasileiros. Nessas circunstâncias, reformar nossa ortografia para ajustá-la à língua de nações extremamente distintas da nossa soa como uma inaceitável capitulação cultural, ainda mais pelo fato de tal reforma servir muito mais a interesses portugueses.

Já no início do século passado, o filólogo e historiador João Ribeiro escrevia estas palavras atualíssimas: “A nossa gramática não pode ser inteiramente a mesma dos portugueses. As diferenciações regionais reclamam estilo e método diversos. A verdade é que, corrigindo-nos, estamos de fato a mutilar idéias e sentimentos que nos são pessoais. Já não é a língua que apuramos, é o nosso espírito que sujeitamos a servilismo inexplicável. Falar diferentemente não é falar errado. A fisionomia dos filhos não é a aberração teratológica da fisionomia paterna. Na linguagem como na natureza, não há igualdades absolutas; não há, pois, expressões diferentes que não correspondam também a idéias ou a sentimentos diferentes. Trocar um vocábulo, uma inflexão nossa por outra de Coimbra é alterar o valor de ambos a preço de uniformidades artificiosas e enganadoras.”

Há alguns anos temos assistido a uma invasão dos meios de comunicação por professores de português apresentando programinhas normativistas em que os usos lingüísticos caracteristicamente brasileiros são vilipendiados. Tais “mestres”, que parecem jamais ter tido aulas de Lingüística em seus cursos de Letras, preconizam como única vertente válida uma língua inexistente, virtual, com muitas doses de arcaísmo, lusismo e beletrismo. O problema é que essa língua por eles preconizada – jamais falada em lugar algum – tem sido um dos mais eficientes instrumentos de separação e distinção de classes no Brasil, um dos principais suportes da manutenção de nosso status quo e sua iniqüidade recorde. Ela é produto de uma ideologia lingüística que desqualifica a cultura popular e os falares de determinadas regiões do país em nome do prestígio de um único modo de viver e de uma única visão de mundo. Daí ouvirmos com freqüência, em geral por parte de quem não tem voz em nossa sociedade, tolices colossais do tipo “Português é muito difícil”, “Não sei português”, “Não entendi o que ele disse, mas como falou bonito!”.


Macunaíma (1982) – Aldemir Martins


Essa reforma ortográfica, como tantas coisas no Brasil, se fará de forma autoritária, elitista e colonizada. Seria interessante se pensar numa reforma ortográfica que nos permitisse escrever como brasileiros, que aproximasse a escrita dos usos efetivos língua brasileira, levando em especial consideração sua sintaxe e sua fonética, rompendo definitivamente com o idioma dos portugueses – que tem uma destinação histórica distinta e sustenta uma cultura muito diversa da nossa.

Outro aspecto nunca mencionado nas políticas lingüísticas é o da qualidade do ensino. Enquanto a escola pública permanecer esse lixo que conhecemos, enquanto seus currículos continuarem teóricos demais, distanciados da realidade do país e alheios à diversidade que caracteriza a sociedade contemporânea, enquanto os professores continuarem ensinando esse “português” virtual, o ensino da língua fracassará.

Esta quarta reforma ortográfica em cerca de noventa anos vem aí para nos infernizar a vida, desatualizar da noite para o dia nosso patrimônio escrito, espalhar ainda mais confusão nesse pindorama onde a comunicação entre as pessoas já vai tão mal.

Dá para se prever que dentro de mais algumas décadas lá virão os burocratas reformar a ortografia mais uma vez. Obviamente o povo mal escolarizado, os adolescentes interneteiros e os jovens criadores de modas lingüísticas continuarão escrevendo fora de qualquer padrão imposto por lei, mas conforme sua intuição de como se fazer entender apropriadamente. E os escritores que verdadeiramente vão além do “instinto de nacionalidade” – para usar os termos clássicos de Machado de Assis –, possuindo “sentimento íntimo” do país e estilo próprio, continuarão transbordando os limites da ortografia do “português”.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Alarme

O relógio, esse medidor da morte.

A velha nova mulher

Adriano de Paula Rabelo


No último fim de semana, num salão, enquanto esperava vez para cortar o cabelo, coloquei a mão no cesto de revistas típicas nesses estabelecimentos e puxei uma delas a esmo. Tratava-se de Nova. O título da publicação já é bastante programático: pretende-se apresentar – e ter como público-alvo – a mulher dos novos tempos, sintonizada com todas as liberdades e emancipações pós-revolução sexual. Entretanto, pelo que as páginas da revista oferecem, me pareceu que a nova mulher de Nova é apenas a reatualização de uma senhora velhíssima e esclerosada já bastante conhecida de todos na sociedade patriarcal. Apenas seus comportamentos “ousados” seriam supostamente mais adequados aos tempos contemporâneos.

Lá estão os temas e seções clássicos desse tipo de revista: sexo, amor, beleza, moda, saúde, aconselhamento, etiqueta, decoração, trabalho, horóscopo, culinária, cartas das leitoras. E a linguagem meio coloquial, carregada de imperativos sugestivos e pretensos “femininismos”. Os testemunhos pessoais e o parecer incontestável de especialistas também lá estão para garantir a identificação da leitora e sua persuasão.

Pode-se constatar, pelo conteúdo dos textos, uma proposta básica de que a mulher atual deve se modernizar, abandonando o âmbito doméstico e ganhando o mundo, trabalhando fora e exercitando seu direito ao máximo de prazer. A mulher tradicional e submissa ao marido é transfigurada, tornando-se autônoma, sensual, dinâmica, alguém que sabe o que quer. O sexo associado à reprodução é substituído pelo sexo como fonte de inefáveis delícias, estando agora associado à obrigação de gozar.


Escravas da fórmula de mulher


Pelo que se pode depreender, no entanto, o fulcro da existência da nova mulher de Nova continua sendo o seu homem, aquele que deve ser conquistado ou mantido através de determinados procedimentos de sedução, de surpresas para apimentar o cotidiano, de tratamentos de beleza e organização do ambiente que alimentem o desejo e o interesse masculino. Assim, essa nova mulher não mudou em sua essência, permanecendo um ser-para-o-seu-homem. A despeito da ditadura do prazer a qualquer custo, que a leva mesmo à “ousadia” dos relacionamentos fortuitos, ela parece agir diante de um pano de fundo romântico em que a realização maior é o grande amor, a chegada do homem com quem enfim encontrará a plenitude, seja transitória, seja permanente.

Claro que a revista feminina não é a criadora da mulher que preconiza. Seu corpo editorial apenas detecta tendências em voga e organiza um sistema de prescrições sobre como ser a mulher “moderna”, transformando-a num produto comercialmente bem sucedido que tem como público consumidor justamente aquelas que se identificam com seu ideário.

Mas não somente nas revistas femininas podem ser encontrados os avatares da nova mulher. Eles estão, por exemplo, nas novelas, nas canções popularescas e nos filminhos digestivos nos quais uma figura feminina bela, atualizada, dinâmica, “independente”, arrojada e sensual tem como finalidade última de sua existência agradar seu parceiro através de sua aparência e seu comportamento. Se as mulheres consideradas modernas – autoproclamadas herdeiras máximas dos movimentos de emancipação ocorridos no século passado – são isso aí, resta-lhes agora uma emancipação talvez mais difícil que a do jugo patriarcalista: falta-lhes se emanciparem de si mesmas.

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Empurra

A sociedade são os outros.

Ginecófago e misógino

Adriano de Paula Rabelo

Nesta terra de apaixonados e veementes, considero que nossos melhores representantes são os radicais, os que vão ao fundo das coisas ou tocam os extremos da vida. Há vários anos encontrei, na cidade de São Paulo, duas figuras cujas personalidades se localizavam em dois extremos opostos mas talvez curiosamente próximos.

Quando conheci Sérgio e Anselmo, ambos já andavam lá pelos seus quarenta e tantos anos. Todas as tardes de sábado os encontrava nas quadras de futebol de salão da universidade, onde uma turma de uns vinte a trinta jogadores se reunia para o esporte de fim de semana. Enquanto dois times de cinco jogavam, duas ou três outras equipes aguardavam sua vez do lado de fora. Essa espera sempre foi tão fascinante quanto o próprio jogo. Enquanto os de fora ficavam na expectativa de entrar em quadra, a conversa corria solta, ocasião em que vinham à tona as mais esdrúxulas filosofias, as histórias mais pitorescas, o humorismo mais brasileiro. Nessas sessões da tarde, ficamos conhecendo as histórias e o pensamento vivo das duas figuras excepcionais de que tratarei aqui.

Sérgio vivia assombrando a todos com seu recorde excepcional e insuperável: conforme sua contabilidade, já havia ido para a cama com nada menos que 1778 mulheres. Os mais impressionados com esse número astronômico faziam as contas: caso nosso Casanova levasse para a cama uma única mulher por dia, sem repetir nenhuma, levaria quase cinco anos ininterruptos para completar suas 1778 parceiras sexuais. Todo o grupo ficava de queixo caído. Se somássemos os números de todos os quase trinta colegas ali presentes, não chegaríamos nem à metade desse incrível montante. Nem o sublime Pelé, com seus 1281 gols, conseguiu assinalar tantos “tentos” quanto Sérgio.

A reação inicial de todo mundo era de incredulidade. Porém nosso Valmont paulistano afirmou que tinha como comprovar seu recorde. Passados alguns dias, ele nos chega com pilhas de álbuns de fotografias em que registrara suas aventuras ao longo da vida. Sérgio, que durante a juventude tinha boa situação econômica e disponibilidade para as conquistas, dedicou a vida a estar com uma sucessão inconcebível de mulheres de todo tipo durante os anos 60 e 70, quando a aids ainda não existia. A rua Augusta, o parque Ibirapuera, os bares e clubes noturnos foram seu habitat. O apartamento onde morava sozinho foi seu “abatedouro”. Nele, o fauno paulista mantinha sempre uma câmera fotográfica automática num tripé, registrando para a posteridade cada um de seus encontros fortuitos.

Conforme suas explicações para vida que levou, em relação à qual sentia um misto de orgulho e melancolia, em todas essas mulheres Sérgio buscou o Amor, a Beleza, a Sensualidade, a Inteligência, a Paixão, a Pureza, a Compreensão, a Aventura, a Força... Enfim, o absoluto. Como jamais encontrou todos esses atributos numa única mulher, tentou reuni-los juntando os pedaços que encontrava em cada amante isoladamente. Já próximo dos cinqüenta anos, casado e pai de família, nosso Fausto ainda afirmava não haver desistido de conseguir abarcar a totalidade do universo feminino.


Sonho de Sérgio, pesadelo de Anselmo

A outra figura extremada de que aqui me recordo é Anselmo, que dizia detestar as mulheres “não por viadagem, mas por misoginia”. Alto, sério, grisalho e magrelão, no final do segundo ano de faculdade, aos dezenove anos, ele conheceu uma polonesa que viera para uma temporada de pesquisas na universidade. Em pouco mais de um mês eles se encontraram, se apaixonaram, namoraram, casaram-se e partiram para o distante país do leste europeu, ainda nos últimos anos antes da queda do Muro de Berlim. Lá Anselmo viveu cerca de três anos, sofrendo com o frio, a língua absurdamente difícil de aprender e principalmente a degradação dos sonhos e planos do mês em que viveu sua eterna paixão no Brasil. Por fim, tudo acabou da pior forma, com bate-bocas e violências físicas. Um abajur arremessado na cabeça de nosso amigo foi a gota d’água. Bufando sua fúria, ele abandonou tudo e partiu de volta para São Paulo, carregando profunda desilusão e raiva da mulher, ou melhor, de todas as mulheres, às quais estendeu seu desencanto. Apenas nos últimos anos havia se tornado amigo e confidente de uma lésbica, talvez por essa condição lhe dar certa segurança de que os dois jamais se envolveriam.

Tendo feito voto de nunca mais voltar a se relacionar amorosamente com mulher alguma, Anselmo não perdia a chance de exibir seus arroubos misóginos, alardeando aos quatro ventos os males da confiança nas palavras das mulheres, criticando artimanhas femininas e atacando o casamento, instituição que, segundo ele, é uma inequívoca invenção do belo sexo. Para seu horror, parecia-lhe que este mundo está prestes a ser completamente dominado por elas, que estariam muito próximas de assumir o poder e o controle de todos os campos da atividade humana. Por isso, Anselmo clamava pela urgência um movimento “masculinista”.

Essas duas trajetórias incríveis se aproximam pela tentativa de encontrar um ideal de mulher que obviamente não existe. Talvez se possa considerar seus imaginários como duas variantes opostas de um pigmalionismo falhado. Em As metamorfoses, o poeta romano Ovídio conta a história de Pigmalião, rei de Chipre e escultor lendário que se apaixonou por uma estátua de mulher esculpida por ele mesmo, a que deu o nome de Galatéia. Com isso, pediu a Afrodite que lhe desse uma mulher tão perfeita como a sua escultura. A deusa foi além, dando vida à própria estátua. Pigmalião, então, casou-se com sua obra e foi eternamente feliz sob a proteção da deusa do amor e da beleza. Os modelos ideais de vida, no entanto, só se realizam no âmbito das lendas e mitos, que freqüentemente dão forma a pulsões de nossa psicologia profunda.

Sérgio tentou construir sua Galatéia através da busca de incorporação de todas as variantes positivas do feminino, e Anselmo, frustrados precocemente os ideais do amor romântico, descambou para a aversão à mulher, cultivando em seu horizonte uma anti-Galatéia. Entre esses dois extremos, é claro, situa-se a maturidade, que consiste em saber lidar com a frustração e elaborar a perda. A mulher real, ou melhor, o ser humano real, é uma unidade muito complexa de grandeza e miséria, talento e inépcia, clarividência e cegueira. Principalmente, é alguém marcado irremissivelmente pela incompletude e pela finitude. Ainda assim, seus defeitos e qualidades podem compor uma individualidade amável, e no amor duas individualidades podem realizar juntas uma experiência de completude e eternidade. No fundo nossas duas extraordinárias figuras talvez nunca tenham conseguido superar um apego narcísico a si mesmos.