sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Novíssimo Testamento

Diz-me onde compras, e dir-te-ei quem és.

Quartetos do possível prazer de viver

Adriano de Paula Rabelo

Acabo de fechar o livro Rubáiyát, de Omar Kháyyám, que de vez em quando pego para ler e sempre termino em uma ou duas sentadas. Tenho a tradução de Octavio Tarquínio de Sousa, editada pela José Olympio em 1957. Toda a edição é excelente, com capa dura e papel de ótima qualidade. Cada poema é emoldurado com ornamentos típicos da cultura persa.

Kháyyám nasceu na Pérsia, hoje Irã, em 1048, tendo morrido em 1131. Além de poeta, foi matemático, filósofo e astrônomo. A palavra “rubáiyát”, em persa, significa “quartetos”, e esta é a forma de seus brevíssimos textos. Acredita-se que ele escreveu cerca de mil poemetos de quatro linhas. Sua releitura é, para mim, revitalizadora, não somente pela beleza dos versos mas também pela filosofia que apresentam.

É incrível como seus quartetos, ainda que recebidos em tradução de tradução ou mesmo em recriação de versões livres, mantêm a atualidade e a universalidade. O tempo todo Kháyyám faz uma constatação da precariedade da condição humana, do sem-sentido da vida e da incerteza de nosso destino, posicionando-se frontalmente contra as sabedorias convencionais e as migalhas das religiões. Por isso, reatualizando o tópico do carpe diem, de longa tradição na poesia ocidental, ele nos convida o tempo todo a viver intensamente o presente como forma de fazer face ao que Unamuno chamou de “sentimento trágico da vida”, aproximando-se inclusive da sabedoria de Sileno que costumava encerrar as tragédias gregas:


Se bebes um bom vinho, Kháyyám, és feliz * Se contemplas a tua fresca namorada, és feliz... * Se sonhas que não existes mais, és feliz, pois a morte... é o nada.


Ou ainda:


Toma a resolução de não mais contemplar o céu. * Cerca-te de belas raparigas e deixa que elas te acariciem. * Hesitas ainda? * Tens a tentação de orar a Deus? * Antes de ti, outros homens fizeram súplicas ardentes. * É certo que eles já partiram deste mundo, mas tu ignoras se Deus as escutou.


A morte é desencanto, crueldade, prosaísmo e grotesco diante dos quais todos – ricos e pobres, poderosos e humilhados – se igualam. Isso reforça a necessidade de se viver bem enquanto é possível:


Vi ontem um oleiro sentado diante do seu torno, modelando as alças e os contornos de uma urna. * O barro que ele amassava era feito de crânios de sultões e de mãos de mendigos.


Ou


A roda gira descuidosa dos cálculos dos sábios. * Renuncia à vaidade de contar os astros e medita antes sobre esta certeza: deves morrer, não sonharás mais e os vermes da terra ou os cães vagabundos devorarão o teu cadáver.


Quanto à religião especificamente, o agnosticismo do poeta é coerente com sua visão de um mundo no mínimo abandonado por Deus:


Outrora, quando eu freqüentava as mesquitas, não fazia orações, mas voltava a casa rico de esperanças. * Ainda hoje gosto de sentar-me nas mesquitas. * Nelas, a sombra é propícia ao sono.


Ou


Nas igrejas, nas sinagogas e nas mesquitas buscam refúgio os que temem o inferno. * Mas o homem que conhece os segredos de Deus não cultiva no seu coração as sementes do terror e da súplica.


Omar Kháyyám e seus rubáiyát


Diante do mistério insuperável da vida, pela qual nada temos a agradecer, só nos resta renunciar às escatologias, às grandes explicações, às esperanças e ilusões que se esforçam por dar sentido a um universo sem plano e sem finalidade:


Meu nascimento não trouxe nenhum proveito ao universo. * Minha morte não lhe diminuirá a imensidade nem a beleza. * Ninguém pode explicar-me por que vim, por que me vou embora.


Ou


O imenso mundo: um grão de areia perdido no espaço. * Toda a ciência dos homens: palavras. * Os povos, os animais e as flores dos sete climas: sombras. * O resultado de tua meditação: nada.


Mesmo o amor – que dá aos idealistas a ilusão de poder superar a morte e a brevidade da vida – é frágil e perecível, fechando o seu ciclo e acabando inexoravelmente:


Por que tanta suavidade, tanta ternura, no começo do nosso amor? * Por que tantos carinhos, tantas delícias depois? * E... por que hoje o teu único prazer é dilacerar o meu coração? * Por quê?


Ou


Recebi o golpe que esperava. * Abandonou-me a bem-amada. * Quando eu a possuía, era-me tão fácil desprezar o amor e exaltar todas as renúncias!... * Junto de tua amada, Kháyyám, como estavas só! * Sabes? * Ela se foi para que tu possas refugiar-te nela...


Por fim, no desencantamento universal, resta-nos o encanto das pequenas e frágeis belezas, que só podem ser apreendidas em sua fugacidade:


Mais uma aurora! * Como todas as manhãs, descubro hoje o esplendor do mundo e me aflijo por não poder render graças ao Criador dele... * Mas há tantas rosas que me consolo, e tantos lábios que se oferecem aos meus!... * Deixa tua cítara, ó minha bem-amada: os pássaros estão cantando...

Omar Kháyyám nos propõe que simplesmente vivamos, sem exaltar nem maldizer a existência, apenas aceitando-a em suas contingências, despreocupados da morte. Se é que Deus existe, Ele haverá de ter compaixão de nossa miserável condição e perdoar as nossas fraquezas, pois, como alguém já disse, essa é a Sua profissão. Portanto, apresentando uma concepção religiosa – ou a-religiosa – muito distante das vertentes populares de todos os credos, o poeta também não se mostra um ateu. Apenas está convencido de que forças divinas não intervêm neste mundo e não acredita num Juízo Final nem em punições e recompensas após a morte. Para ele, as leis da natureza, que é indiferente aos dramas humanos, é que explicam os fenômenos da vida. Será que não viveríamos com muito mais paz e harmonia se, como Kháyyám, nos livrássemos de todos esses fardos da religião, do sufocamento das grandes sabedorias, da cobiça por ser ou ter sempre mais?

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Trovões

A Coca-cola é o prelúdio do arroto.

Conga, Kichute e Bamba

Adriano de Paula Rabelo


De vez em quando, passeando pelo passado, não resisto a escrever alguma crônica de memória. Não sou saudosista nem tenho qualquer simpatia pela postura nostálgica e retrô. Como tudo, a vida segue para frente. Meu olhar para o passado é simplesmente uma busca por dar sentido ao presente, criticá-lo, elogiá-lo, rir dele, compreendê-lo.

Ontem à noite, coloquei para tocar o disco Clube da Esquina, de Milton Nascimento e Lô Borges, lançado em 1972. Enquanto ouvia as canções desse clássico da MPB, fiquei por algum tempo contemplando a capa, que estampa dois meninos muito parecidos com os cantores – um negro como Milton Nascimento e outro branco, a cara de Lô Borges. Ambos estão sentados num chão de terra batida, numa paisagem interiorana e mesmo rural. Logo atrás se vêem um mato, um grosso tronco de árvore e um fio de arame farpado que atravessa a cena. Os garotos estão sujinhos, vestem roupas meio esfarrapadas e fazem pose de grandes parceiros de travessuras. Um está descalço, e o outro, o negro, traz nos pés um indefectível e surrado Conga azul. Esse calçado é que, como verdadeira madeleine, desencadeou em mim todo um processo proustiano de memória. “Podomemórias”, algum aficcionado de neologismos poderia dizer.

Fui menino interiorano durante os anos 70 do século passado. Recordo-me de que, como para toda a minha geração, três espécies de tênis compuseram a história de meus pés durante a infância: Conga, Kichute e Bamba. Os três eram horrorosos mas baratos e duráveis. Desapareceram no início dos anos 80, com o surgimento dos tênis aeróbicos, mais confortáveis, mais bonitos, com desenhos, cores e formas variadas, acessíveis e multiuso.

O Conga parecia um sapo. Levíssimo, de borracha e lona, ambas finas e pouco resistentes. Havia duas opções: ou todo branco ou azul com sola e ponta branca. Era o mais barato e mais ordinário dos três. Usei-o bastante para passear, ir para a escola, jogar bola.


Capa de Clube da Esquina (1972), de Milton Nascimento e Lô Borges


O Kichute, por sua vez, era todo preto, de lona mais grossa e resistente, sola e bico de borracha, grandes travas quadradas e longos cadarços com os quais se dava um laço logo acima do tornozelo ou uma volta por baixo da sola. Havia quem cortasse os cadarços para pudessem ser amarrados normalmente. E havia quem engraxasse as partes de borracha do calçado, para exibi-lo bem lustroso na escola. Todo fechado, escuro e usado indiscriminadamente, não raro acumulava suor dos pés e passava a exalar um cheirinho pouco convidativo. Duravam muito – um ano e meio a dois anos –, ainda que utilizado dia após dia para o futebol em campinhos de terra.

Já o Bamba era caracterizado como “monobloco”, já que sola, ponta e calcanhar compunham uma única peça de borracha branca, sem travas. O resto também era feito de lona muito resistente. Lembro que havia umas duas ou três variações de cores, mas o mais popular era o Bamba todo branco. Machucava muito no início e levava algum tempo para amaciar. Eram ótimos para o futebol de salão nas aulas de educação física, pois a ponta de borracha era dura e excelente para os chutes fortes de bico. Se não me engano, era do Bamba uma propaganda de televisão em que um carro perdia os freios, e o motorista – calçado de Bamba, claro – freava o veículo com o pé esquerdo no chão, a poucos centímetros de um desfiladeiro!

Quando se chegava na escola com algum desses tênis recém-comprados, usados ali pela primeira vez, quase todos os colegas vinham “estreá-lo”, ou seja, pisavam em cima deles e os sujavam. E ai de quem reclamasse ou se indispusesse contra os que faziam isso. Era derrubado no chão e vítima de um “bolinho”, quando todos os outros garotos saltavam-lhe em cima, formando sobre ele um amontoado humano. Não só o tênis, mas toda roupa lhe ficava suja, além da possibilidade de alguns arranhões e hematomas.

Verdadeiros heróis da resistência, Conga, Kichute e Bamba suportavam até mesmo peladas no pátio de cimento da escola, na hora do recreio, com pedras, tampinhas de garrafa ou um fruto duro e redondo chamado lobeira, que nunca mais vi.

Fui um menino provinciano. Não sei se nas cidades grandes os garotos da minha geração viveram essas mesmas experiências com esses calçados que hoje parecem ter existido não décadas atrás, mas há centenas de anos, tão completamente desaparecidos eles foram.

Os anos correram, vieram a adolescência e a idade adulta. Outros calçados – mais bonitos, mais caros e menos duráveis – fizeram a história de meus pés. Foram-se os calçados, ficaram os pés. Assim como passou a cidade pequena de interior, vieram as metrópoles importantes, outros países, outras experiências, mais complexidade, os pesos da vida... Certa vez, conversando com um amigo paulistano num bar da avenida Paulista, este símbolo brasileiro do cosmopolitismo, disse-lhe que continuo sendo, para sempre, para meu bem e meu mal, apenas um menino do interior de Minas.

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Caldeirão

O maior delito do homem é ter nascido no Brasil.

Qual democracia?

Adriano de Paula Rabelo


Winston Churchill dizia que “a democracia é a pior forma de governo, excetuando-se todas a demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos”. De fato, a despeito de todos os seus enormes defeitos, do rebaixamento geral que ela proporciona e de todas as possibilidades de ascensão que ela abre para os maiores energúmenos, ainda assim nada se criou como alternativa viável para o regime democrático.

Onde a democracia é suprimida, a história é sempre a mesma: o governo é tomado de assalto por uma oligarquia que tudo decide sem dar nenhuma satisfação aos desprivilegiados e sem admitir qualquer visão alternativa da administração do bem público e das pessoas que não seja a sua própria. Na democracia, as oligarquias continuam no poder, já que estabelecem as regras e a prática relacionadas a quem de fato pode assumir os cargos políticos – além de possuírem e controlarem os meios de persuasão –, mas têm de se haver constantemente com aqueles que legitimaram seu poder através do voto. Assim, elas se defrontarão o tempo todo com as mazelas da plebe e serão pressionadas a lhes dar uma resposta, o que quase sempre resultará em repressão ou paliativos.

Até aqui tratamos do aspecto meramente formal da democracia, que se expressa nas eleições, no voto e no governo representativo. No entanto, a experiência nos mostra de forma evidente que a simples salvaguarda dos processos democráticos formais não basta para garantir um mínimo de justiça social e um Estado minimamente eficaz como verdadeiro guardião dos direitos da cidadania. Portanto, já passa da hora de se estabelecer uma melhor definição para o termo.

Se o regime democrático, numa definição aperfeiçoada, é aquele em que os direitos humanos estão garantidos antes pela práxis da sociedade que pelas leis, em que todos os cidadãos possuem um mínimo de condições materiais, de educação e de saúde para poderem desenvolver suas potencialidades, em que os vampiros do Estado são punidos com rigor e inflexibilidade, pode-se concluir que uma sociedade como a brasileira jamais foi democrática em nenhum momento de sua história.

Como se poderá falar em democracia no Brasil após um simples passeio pela periferia de nossas grandes e médias cidades? E em face do distinto peso das leis conforme a condição econômico-social daqueles que as violam? E diante da manipulação da vontade das massas pelos grandes veículos de comunicação?


A Liberdade conduzindo o povo (1830) – Eugène Delacroix

Atualmente, discute-se muito o papel da educação como panacéia para a resolução de todas as iniqüidades nacionais. Em geral, quando se fala nisso, a idéia se reduz apenas à máxima inclusão da população, em especial crianças e adolescentes, no sistema escolar. Com todo mundo atravessando a escola ao menos do primário ao ensino médio, ampliando-se como for possível o acesso dos recém-adultos à universidade, acredita-se que o país caminhará a passos largos para o desenvolvimento e que os miseráveis serão redimidos pela inclusão social. Estatísticas e exemplos de países asiáticos – evadidos de suas circunstâncias históricas e das reformas sociais que promoveram – sempre vêm à tona em apoio dessa idéia.

Sem deixar de reconhecer o papel fundamental da educação como forma de se pavimentar o caminho para a democracia, acredito que o argumento da educação-panacéia é míope e desfocado. Em primeiro lugar porque só se fala na extensão das possibilidades de escolarização, pouco ou nada se discutindo a qualidade do ensino a ser oferecido e a relevância de seus conteúdos no mundo contemporâneo. Em segundo lugar – e este é o ponto crucial –, um sistema de educação extensivo e de boa qualidade não é a maior conquista a ser obtida pela sociedade brasileira para que ela comece enfim a se democratizar. Muito mais importante e urgente é se pensar em políticas que possibilitem uma radical melhora na distribuição de renda. Curiosamente este ponto é pouquíssimo citado e discutido como aspecto democratizador.

Onde estão as políticas de inclusão da juventude no mercado de trabalho? Ou de elevação do nosso vergonhoso salário mínimo? Ou os incentivos para que pequenas e médias empresas se instalem em localidades com altos índices de desemprego? E o aumento da carga tributária sobre os mais ricos, acompanhado de sua diminuição entre os mais pobres? Como a maioria da população brasileira poderá adquirir de fato a condição de cidadania sem um padrão econômico mínimo para a dignidade humana? Como o descalabro de violência, destruição ambiental e degradação do nível de vida a que chegamos poderá ser revertido se não se modificar nossa brutal concentração das riquezas? Por que não se tornar a corrupção um crime hediondo e inafiançável, com penas correspondentes àquelas prescritas para homicídio doloso, já que sem dúvida escroques da laia de um Paulo Maluf ou um Jader Barbalho são criminosos que causam muito mais danos à sociedade que um assaltante, traficante ou seqüestrador de periferia?

Claro que todos esses anseios situam-se no plano da utopia. O próprio James Madison, um dos mais reverenciados ideólogos da democracia americana, considerava que a principal responsabilidade do governo é “proteger a minoria opulenta da maioria”. E de fato até hoje esse tem sido o princípio que vem orientando o sistema democrático limitado às formalidades. Daí esse fosso gigantesco que se criou entre as preferências do público e as políticas públicas. Daí os governos completamente divorciados da vontade das maiorias, cujo papel se resume a simplesmente comparecer às urnas de tempos em tempos para legitimá-los.

As estruturas de dominação, porém, são criações humanas e podem ser desmontadas. Somente a organização e mobilização dos desprivilegiados, ou seja, o fortalecimento dos movimentos sociais e entidades da sociedade civil, será capaz de transformar esse quadro. O caos em que vivemos pode estar prestes a fazer com que a sociedade entre em colapso e explodam revoltas de gravíssimas conseqüências. Quem sabe inclusive – como no movimento de 1789, na França – algumas cabeças graúdas não venham a rolar?

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Velha

A juventude: a mais antiga das entidades.

Etimologia dos apelidos

Adriano de Paula Rabelo


Sérgio Buarque de Holanda interpretou o brasileiro como um “homem cordial”, aquele que age pelo coração, que se sente muito pouco à vontade em situações que exigem formalismo e distanciamento. Por isso teríamos enorme dificuldade em montar um Estado eficiente, realizando de modo mais aprimorado os valores da vida pública. Em contrapartida, distinguimo-nos pelo desenvolvimento dos valores da família e das relações interpessoais. Nesse contexto, uma das expressões mais características de nosso modo de ser é a tendência não somente à omissão do nome de família no tratamento social e mesmo na vida pública, mas muitas vezes o emprego desenfreado de apelidos. Estes são talvez a expressão mais profunda de nosso constante movimento para abolir distâncias e formalismos no trato social.

Numa Copa do Mundo, por exemplo, nossos jogadores são os únicos que exibem para o todo o planeta, inscritos em suas camisas, os nomes pelos quais são conhecidos, quase sempre apelidos ou o primeiro nome. Até mesmo Lula, o atual presidente da República, mesmo em determinados cerimoniais é chamado pelo apelido com o qual construiu sua carreira na política. O maior herói brasileiro, Tiradentes, celebrizou-se através do apelido. E mesmo os santos da tradição católica são tratados no diminutivo, como Santa Terezinha; ou aproximados no mínimo por meio de um possessivo, como “minha Nossa Senhora”. Quem nunca se deparou com o cúmulo de ouvir alguém fazer invocações a “meu Jesus Cristinho”?

Ainda está por ser feito todo um amplo estudo sociológico sobre o apelido na cultura brasileira. Nenhum de nós atravessou a vida familiar, a escolarização, os campos de futebol ou os salões de beleza sem um apelido. Pelo interior do país há até mesmo certas cidades que chegam ao fastígio de editar sua lista telefônica não com os nomes de cartório dos assinantes, mas com seus apelidos.

Em geral esses nomes que fundamentam a identidade social profunda das pessoas no Brasil vêm da infância, estão muito relacionados a aspectos culturais de cada região e podem mesmo variar de lugar para lugar e de tempos em tempos. Assim, um indivíduo poderá ter um apelido em família, outro entre seus amigos, outro no ambiente de trabalho e ainda outro no trato conjugal. Pode ter tido um apelido durante a infância ou a adolescência que foi se perdendo ou se modificando com o tempo, na medida em que suas relações sociais foram se alterando. Há quem se identifique de forma tão profunda com um apelido que praticamente desliga-se do nome verdadeiro, seja por não gostar deste, seja por uma natural sobreposição daquele pelo uso constante.


Amácio Mazzaroppi em As aventuras de Pedro Malasartes (1959)


O fenômeno é tão marcante no Brasil que muitas de nossas figuras lendárias e assombrações celebrizaram-se através de seus apelidos: Pedro Malasartes, João Grilo, Cuca, Papa-Figo, Barba Ruiva, Romãozinho, Cabeça-de-Cuia, Corpo Seco, Mão-de-Cabelo.

Já no âmbito de nossa construção social, um dos principais formadores de apelido é o diminutivo, que normalmente possui uma conotação carinhosa. Daí tantas Glorinhas, Vaninhas, Paulinhos, Marcinhos, Cicinhos. A redução de nomes próprios, quase sempre centrada na sílaba tônica, também é muito recorrente: Guga, Zeca, Tôim, Lu, Vi, Digo, Lena, Bia. E também a repetição de sílabas com veementes vogais tônicas: Lilico, Leleco, Cacá, Bibi, Lili, Dedé. Esses os apelidos derivados diretamente dos nomes próprios.

Já os apodos, num sentido mais estrito, estabelecem uma comparação espirituosa ou ultrajante em função de alguma característica física ou moral. São muito comuns em nossas ruas, botecos e praças, não possuindo uma clara regra de formação. Todavia, freqüentemente recorrem ao mundo natural, transferindo para as pessoas os nomes de animais, frutas, legumes e fenômenos. Daí os inúmeros Ratos, Jibóias, Bananas, Batatas, Cebolas e Trovões do mundo popular. Na adolescência, me lembro de haver jogado num time de futebol que tinha, ao mesmo tempo, no esquadrão titular, um Ratinho, um Jacaré, um Vaca e um Canário. Em outras ocasiões, cheguei a jogar com um Calango e um Barata!

Os defeitos ou ao menos os aspectos físicos mais destacados inevitavelmente fazem proliferar apelidos como Dentinho, Bola, Mancha, Tampinha, Bocão, Cabelo, Prancha, Ferrugem, Gamela, Fofão... Certa vez conheci um certo Umbigo, não me lembro por quê; e um certo Alfinete, alto e magrelão.

E aqueles que são parecidos com personalidades famosas não escaparão de que elas os persigam involuntariamente na ferina língua do povo. Houve um tempo em que todo negro era chamado de Pelé. Mais recentemente muitos barbudos passaram a ser Bin Laden. Me lembro de um colega de colégio que tinha o santo apelido de São Francisco, às vezes Carinha de São Francisco. Absolutamente perfeito, pois a semelhança era tamanha que, dizíamos, quando ele saía na rua os passarinhos lhe pousavam no ombro.

Por fim, apenas mais três processos de formação de apelido mais comuns no Brasil: o decorrente da profissão do sujeito (Mané Carreteiro, Maria Doceira, Juca Pintor); aquele de teor étnico, às vezes com uma pincelada de racismo (Azul ou Alemão, para negros; Leitinho ou novamente Alemão, para louros; Japonês, para qualquer um de olhos puxados; Judeu, para avarentos); e os de teor comportamental (Matraca, para pessoa muito falante; Bíblia, para protestantes).

O apelido é talvez a expressão maior de nossa tendência ao informalismo e à máxima aproximação com o outro, ainda que as barreiras sociais sejam quebradas através do singular costume brasileiro de rir dos defeitos físicos e morais próprios e alheios. Há quem veja com bons olhos essa nossa idiossincrasia, uma das marcas mais vigorosas de nossa singularidade, de nossa falta de sisudez; e há quem a deteste e a condene. De todo modo, o importante é ter sempre presente que o apelido tem seu lugar, sua hora e determinado grupo de pessoas autorizadas a utilizá-lo. Mesmo a entonação em que ele é pronunciado denuncia a intenção carinhosa, simplesmente jocosa ou ultrajante de quem o emite, provocando reações específicas por parte de quem o recebe. Quando se fizer um amplo estudo sociológico de seus usos, muito será revelado sobre quem são os brasileiros.