sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

3° pelotão

Toda tropa é uma corja.

Garrincha na cara do mundo

Adriano de Paula Rabelo


“Feliz do povo que pode esfregar um Garrincha na cara do mundo!”. Assim escreveu Nelson Rodrigues numa crônica logo após a semifinal da Copa do Mundo de 1962, em que o grande jogador realizou uma de suas maravilhosas exibições. Já escrevi aqui sobre Garrincha como expressão da brasilidade profunda, como encarnação do anti-herói torto que povoa os nossos arquétipos: aquele que, em vez da força e dos poderes físicos superiores, utiliza-se da malícia e da sagacidade para superar obstáculos, muitas vezes transformando suas próprias deficiências físicas em qualidades especiais. Isso não somente por suas pernas tortas – uma bem mais curta que a outra – e a bacia deslocada, a pequena estatura de quem cresceu mal alimentado nos grotões do interior do Brasil, os olhos ligeiramente estrábicos, o corpo cheinho de quem só veio a fazer ginástica pela primeira vez já próximo dos vinte anos. Sua forma de jogar também contrariava todos os princípios do esporte, subvertia todas as táticas, porém alcançando os melhores resultados.

Seu biógrafo Ruy Castro conta que, num amistoso do Botafogo na França, em 1955, faltando cerca de cinco minutos para o fim da partida e com o time carioca aplicando uma goleada, o técnico pediu para que os jogadores prendessem a bola e se poupassem. Eis a descrição do que então se passou: [Garrincha] “Começou a driblar sem soltar a bola para ninguém, a enfiá-la entre as pernas dos beques e a fazê-los trombar uns nos outros, como se estivesse nas peladas de Pau Grande [sua cidade natal]. Ficou tantos minutos com a bola que os adversários já não se atreviam a ir tentar tomá-la. O estádio inteiro levantou-se para aplaudir. (...) Garrincha então partia para cima deles e, às vezes, voltava para driblar em direção ao gol do próprio Botafogo. O jogo terminou com a bola aos seus pés.”

Na final do Campeonato Carioca de 1957, já no começo do segundo tempo, com o Botafogo goleando o Fluminense por 4x1, Telê Santana pediu a Didi, entregando os pontos: “Vocês já são campeões. Diga ao Garrincha para parar de desmoralizar o Clóvis e o Altair. Vamos ficar por aqui.”

Era comum que laterais adversários se aproximassem dele antes do jogo e implorassem: “Mané, quebra meu galho. Estou pra me casar e meu contrato está no fim. Vê se não judia muito de mim, senão eu fico mal.”

Na biografia de Castro há uma foto de um jogo entre Brasil x México pela Copa de 1962, em que Garrincha, com a bola nos pés, está cercado por nada menos que oito adversários – alguns já caídos – que tentam em vão tirá-la.


Garrincha driblando oito de uma vez


Foi esse jogador com nome de passarinho que, nos anos 1950 e 60, passou a ser conhecido como “alegria do povo”. Como um Carlitos de Chaplin, ele conseguiu, com sua arte, suavizar os graves problemas enfrentados pela grande maioria de pobres em nosso país, fazendo com que eles pudessem sonhar com a possibilidade de as coisas serem diferentes. Sobre isso escreveu Carlos Drummond de Andrade numa crônica por ocasião da morte do excepcional futebolista: “Foi um pobre e pequeno mortal que ajudou um país inteiro a sublimar suas tristezas. O pior é que as tristezas voltam, e não há outro Garrincha disponível. Precisa-se de um novo, que nos alimente o sonho.”

Por outro lado, um país que produziu um Aleijadinho, um Machado de Assis, um Santos Dumont e um Garrincha – essas figuras que se tornaram gloriosas a despeito de ou por causa de suas faltas – já deveria ter superado os seus complexos nacionais. Talvez o povo já tenha feito isso. Nossa casta dominante é que – viúva da chic Paris, separada da snob Londres, distante da cosmopolitan Nova York –, encharcada de provincianismo, prossegue cada vez mais vira-lata.

Mas voltando a Garrincha, como todos sabem, ele teve um triste fim, encerrando a carreira bem cedo por causa de médicos inescrupulosos que lhe aplicavam anestésicos nos joelhos machucados, a fim de que o Botafogo pudesse cumprir contratos em excursões pelo exterior e também para que ele pudesse jogar partidas importantes. Após abandonar o futebol profissional, perdendo seus referenciais, Garrincha se entregou ao alcoolismo, que já vinha de longa data, e passou a ser destruído lentamente. Até que a morte o colheu, praticamente na indigência, no início de 1983. O templo no qual foi velado não poderia ser outro: o estádio do Maracanã, palco maior de seus espetáculos.

Nasci pouco depois do encerramento da carreira profissional de Garrincha. Mas tive a felicidade e a frustração de vê-lo jogar. É que, no final dos anos 1970, ele percorria o Brasil com um time de exibição. Houve uma ocasião em que esse time foi parar em Divinópolis, minha cidade natal, para um amistoso contra o Guarani local. Eu devia ter uns oito ou nove anos, e meu pai me levou para ver o gênio. Garrincha estava gordo, lento, com péssimo condicionamento físico e mau de saúde, já esmagado pelo álcool. Mal conseguia dar uma arrancada de dez metros. Uma turma de peladeiros completava a paisagem na sua equipe. Nosso Guarani não somente venceu a partida como por vários anos tivemos de agüentar Coca, o lateral esquerdo divinopolitano, jactando-se de que marcou Garrincha e não o deixou fazer nada em campo! Retrucávamos que, naquelas condições, até nossas bisavós, até os cones de treinamento marcariam Garrincha, e ele não faria nada em campo... De todo modo, terminado o jogo, a meninada e seus pais entraram no gramado para tirar fotos com o ídolo. Eu e meu pai tiramos uma abraçados com ele, um de cada lado, sorridentes. Como lamento hoje que essa foto haja se perdido entre os desorganizados álbuns e sacos de fotografias deixados por meu pai, que também já não está entre nós!

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Pescoção

A gravata é uma forca lenta.

O desfocamento do estrangeirismo

Adriano de Paula Rabelo


No último dia 12 de dezembro, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara aprovou o projeto de lei do deputado Aldo Rebelo que visa “proteger” e “defender” a “língua portuguesa”. Apresentado em 1999, somente neste ano o projeto, que já foi aprovado no Senado, vai para a última votação no plenário, devendo entrar em vigor em breve. Ironicamente o texto de Rebelo baseia-se em duas leis estrangeiras, sancionadas na França nos anos de 1975 e 1994, cuja pretensão era proteger a latinidade da língua.

Nestes quase dez anos de tramitação do projeto do deputado alagoano, uma acirrada polêmica tem sido travada entre lingüistas e um variado contingente de pessoas que acreditam que a proteção da língua nacional corresponde à salvaguarda de nossa soberania. Os cientistas da linguagem em geral atacam toda tentativa de se legislar sobre o idioma, pois ele é uma entidade viva, que se modifica constantemente e, como parte desse processo, entra em contato com outras línguas, assimilando vocábulos e expressões que o enriquecem expressivamente. Para eles, o estrangeirismo excessivo e sem respaldo no espírito do idioma nacional não passará de um modismo e será descartado naturalmente. Já os paladinos da nossa soberania e da pureza de nossa língua consideram – não sem razão – que há um emprego excessivo de estrangeirismos no Brasil, que eles exprimem em geral um precário domínio da variante chamada “culta” do idioma e freqüentemente se compõem de termos apenas pescados no dicionário de inglês; duas faces, portanto, da ignorância. Além disso, o emprego de termos na língua de George Bush, além de representar subserviência ao imperialismo, tem também um aspecto classista, pois todos sabemos que, por exemplo, teen não é qualquer adolescente, mas aquele de classe média para cima, que reside em área urbana, rato de shopping centers e lan houses, estudante de escolas particulares e beneficiário de mesadas dos pais. Por isso, em nome de nossos valores mais caros e do politicamente correto, o legislativo deveria intervir para expulsar esses corpos estranhos do organismo da língua.

Certamente a lei Aldo Rebelo será mais uma dessas que já nascem mortas neste país da ilegalidade triunfante. Sem dúvida a língua brasileira seguirá seu curso histórico para muito além da lei dos homens, gerando ela mesma suas próprias normas. Entretanto, o projeto do deputado do PCdoB tem tido no mínimo a virtude de provocar um amplo debate sobre um tema que obviamente merece ser discutido. Acontece que a discussão, tal como tem se realizado, me parece bastante fora de foco.


Uma língua e muitas contribuições


A língua brasileira, mesmo em suas vertentes mais castiças, constitui, sobre a base latina e lusitana, um amálgama de contribuições de línguas indígenas e africanas, do grego antigo, do francês, do espanhol, do árabe e, em graus menores, de outras línguas. Com os muitos contatos culturais proporcionados pelos meios de comunicação e de transporte atuais, nenhuma língua viva está isenta da incorporação de estrangeirismos. Esse fenômeno, quando assimilado com naturalidade para suprir uma falta, nomear uma nova realidade ou simplesmente pelo uso generalizado, aprimora a língua e lhe proporciona novas expressividades. Por outro lado, sempre foi uma das mais evidentes manifestações do imperialismo a imposição da cultura metropolitana. Quase todos os idiomas contemporâneos naturalmente sofrem influências da língua inglesa devido ao fato de os Estados Unidos serem não apenas a sede mas os comandantes e os grandes beneficiários da chamada “globalização”, controlando todo um vasto sistema midiático de massas do qual sua música popular, seu cinema, suas agências noticiosas e, hoje em dia, seus canais de tv a cabo são as principais expressões. Inevitavelmente, com quase um século de preponderância e rapinagem americana no mundo, com as conquistas tecnológicas originárias daquele país, com o triunfo do estilo de vida americano em todo o Ocidente, a língua brasileira não haveria de ficar isenta de anglicismos. Até aí tudo bem. O questionável abuso de termos ingleses entre nós, no entanto, ponto nodal da polêmica ora travada, se é que merece a celeuma que tem provocado, deveria remeter a uma discussão bem mais profunda e anterior à questão da linguagem. O teor da lei Aldo Rebelo e das discussões geradas por ela corresponde a combater um sintoma dos mais evidentes e deixar a doença intocada.

Necessitamos de um debate mais amplo sobre nossa ultravalorização do estrangeiro prestigioso, em especial do anglo-saxão, quase sempre acompanhada de autodepreciação. Antes da sobra de palavras inglesas em nossa língua, estabeleceu-se entre nós uma sobra do modo de vida americano, assimilada acriticamente por nossa casta dominante logo após a decadência francesa e a ascensão dos Estados Unidos, que assumiram a condição de paradigma de modernidade e qualidade de vida aos olhos colonizados de nossa elite. A partir dela, atingiu-se a massificação e o senso comum. Continuamos colonizados e seguiremos colonizados enquanto o país estiver à mercê dessa oligarquia espertalhona que nunca foi apeada de quase todas as instâncias de poder e cuja última grande jogada foi transformar Lula em feitor do horror econômico de fundamento especulativo. O Brasil oficial nunca foi o que realmente é, tal como o Brasil dos grandes meios de informação do eixo Rio-São Paulo. Só o será quando a democracia efetiva – que jamais existiu no país – se realizar através de uma ampla conquista dos mais básicos direitos da cidadania para todos e os espaços decisórios estiverem de fato abertos à participação direta do eleitorado. Obviamente um sistema público educação de boa qualidade – o que também não temos – é fundamental nesse processo. Com isso poderemos conquistar maior liberdade para sermos o que somos com muito mais naturalidade, inclusive nos enriquecendo com a contribuição lingüística e cultural estrangeira sem macaquice, tal como fizeram importantes movimentos da cultura brasileira no século passado, como o Modernismo, que dialogou criativamente com as vanguardas européias; a Bossa Nova, com o cool jazz americano; o Cinema Novo, com o neo-realismo italiano; o Tropicalismo, com a cultura de massas e a contracultura internacional.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Pathos

Tento ser simpático, torno-me mentiroso.

Últimas palavras

Adriano de Paula Rabelo


Manuel Bandeira desejou que seu último poema “fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais” e que contivesse “a paixão dos suicidas que se matam sem explicação”. As últimas palavras de alguém que está prestes a deixar a vida sempre provocaram fascínio. Tanto que em muitos lugares onde se praticou ou ainda se pratica a pena capital o réu tem o direito de dizer algo pela última vez. Naturalmente há um interesse especial pelo que as grandes personalidades disseram logo antes de expirar. Algo que funcione como um resumo de suas vidas ou como uma reflexão acerca dos grandes temas humanos, pois no limiar da morte todos os freios da conveniência se desfazem.

Platão conta em seu diálogo Fedro que Sócrates, condenado à morte por ingestão de cicuta, pouco antes de morrer teria dito a seu discípulo Críton: “Devemos um galo a Asclépio. Pague a dívida, não a esqueça.” Asclépio era o deus da Medicina, e o galo era o animal consagrado a ele. Sócrates, que considerava a morte uma libertação, oferecia o sacrifício como forma de agradecimento ao deus pelo obséquio de retirá-lo da vida.

Já na época do domínio Roma sobre a Grécia, o matemático e geômetra Arquimedes, forçado por um soldado a se apresentar ao general romano que tomou a cidade de Siracusa justamente no momento em que ele estava absorto na comprovação de seus teoremas – sentado no chão e desenhando na areia –, teria lhe dito antes de ser degolado: “Não perturbes os meus círculos.”

A tradição latina legou-nos as palavras finais de alguns imperadores romanos, quase todos extremamente soberbos. César Augusto teria mantido a pose de grandeza até o fim, pronunciando uma frase que posteriormente passou a encerrar ritualmente as representações teatrais romanas: Acta est fabula, isto é, “A história terminou”. Júlio César, vítima de uma conspiração na qual tomou parte seu próprio filho, teria exprimido seu estarrecimento ante a natureza humana ao ser apunhalado por ele: “Até tu, Brutus, meu filho!? Com isso, toda a esperança está perdida.” Vespasiano, sentindo-se morrer, foi bem pouco comedido: “Puxa, acho que estou me tornando um deus.” E de fato ele chegou a ser deificado em Roma após sua morte. Calígula, assassinado por seus próprios soldados, teria exclamado: “Eu vivo!” E Nero, que durante sua existência cultivou veleidades de comediante, se auto-avaliou com excessiva pretensão: “Que grande artista morre comigo!”

Os soberanos modernos, por sua vez, menos megalomaníacos e já imbuídos da cosmogonia cristã, muitas vezes exprimiram o peso de sua consciência no instante final. Felipe III voltou-se para um de seus ministros e disse: “Boa conta vamos dar a Deus de nosso governo!” E Carlos IX, da França, atormentado pela lembrança do massacre de milhares de protestantes na Noite de São Bartolomeu de 1572: “Quanto sangue! Quantos crimes! Que Deus me perdoe o mal que fiz!” A rainha Isabel, da Inglaterra, expirou pedindo: “Todos os meus bens por um momento de vida!” E Afonso XII morreu exclamando: “Que conflito! Que conflito!”

Políticos e intelectuais do século XX também foram bastante expressivos na hora derradeira. O ex-presidente norte-americano Theodore Roosevelt pediu simplesmente: “Apague a luz!” Já o economista britânico John Maynard Keynes lembrou uma de suas fontes de prazer: “Eu deveria ter bebido mais champanhe.” E o revolucionário e teórico do marxismo Leon Trotsky disse aos seus guardas, que estavam prestes a executar o homem que o feriu mortalmente a mando de Stálin, em 1940: “Não matem esse homem. Ele tem uma história para contar.” Winston Churchill, antes de entrar em coma e morrer uma semana depois, em 1965, teria dito: “Estou de saco cheio de tudo.” Ethel Rosenberg, assassinada de maneira infame juntamente com o marido Julius nos Estados Unidos, durante a Guerra Fria, sob falsa acusação de espionagem, afirmou logo antes da execução, em 1953: “Somos as primeiras vítimas do fascismo americano.” E Che Guevara, capturado por mercenários do exército boliviano em 1967, próximo à cidadezinha de La Higuera, teria mantido a dignidade de herói até o fim, dizendo a seu executor: “Sei que você vai me matar. Atire, covarde, você vai matar um homem!”


A morte de Sócrates (1787) – Jean-Louis David


Mas talvez sejam os artistas que nos legaram as últimas palavras mais expressivas. François Rabelais escreveu: “Vou em busca de um grande talvez.” E Leonardo da Vinci, encarnação máxima do gênio da Renascença, criador de uma obra universal e inesgotável, na hora de morrer disse algo que deveria estar no horizonte de todos os pretensiosos do mundo: “Ofendi a Deus e à humanidade, pois meu trabalho não alcançou a qualidade que deveria.”

Outro gênio, Mozart, teria dito: “Sinto o gosto da morte nos lábios... É algo que não pertence a este mundo.” E conforme a esposa de Gustav Mahler, este compositor terminou seus dias numa exaltação a seu ideal na música: “Mozart! Mozart!” Já Beethoven saiu de cena evocando a fórmula ritual pela qual eram finalizados os espetáculos da Commedia dell’Arte: Paudite, amici, comedia finita est, ou seja, “Aplaudam, amigos, a comédia terminou”.

Voltaire, instado por um padre a rejeitar Satanás, respondeu-lhe: “E isso lá são horas de fazer novos inimigos!” O já iluminado Goethe expirou pedindo: “Mais luz! Mais luz!” Heine, ao ser lembrado de sua vida pouco cristã, foi irônico: “Deus me perdoará, é a sua profissão.” Emily Dickinson percebeu que “a névoa está ficando casa vez mais cerrada”. Nosso Olavo Bilac pediu apenas: “Dêem-me café, vou escrever.” E Dylan Thomas, beberrão contumaz, teve uma preocupação bastante original: “Acabo de tomar dezoito doses de uísque seguidas. Acho que sem dúvida é um novo recorde.”

Henry David Thoreau teve o seguinte diálogo com uma tia no leito de morte: “Você fez as pazes com seu Deus?” “Eu nunca briguei com meu Deus.” “Mas você não está preocupado com o outro mundo?” “Um mundo de cada vez.”

Oscar Wilde pediu uma garrafa do champanhe mais caro do hotel onde estava hospedado. Enquanto expirava, tomando a bebida, disse: “Estou morrendo além das minhas possibilidades.” Outro que não apenas morreu, como também nasceu num hotel foi o dramaturgo Eugene O’Neill, que na hora fatal amaldiçoou seu destino: “Nascido num quarto de hotel e, maldito seja, morto num quarto de hotel!” Já o romancista Theodore Dreiser disparou: “Shakespeare, aí vou eu!”

Van Gogh morreu como viveu – melancolicamente. Suas últimas palavras teriam sido: “A tristeza vai durar para sempre.” Frida Kahlo, que também sofreu muito em vida, deixou as seguintes palavras como as últimas em seu diário: “Espero que a caminhada seja feliz e espero não retornar jamais.” E Pablo Picasso pediu aos que ficavam: “Bebam a mim.”

A dançarina Isadora Duncan se despediu como a grande artista que foi: “Adeus, meus amigos, vou para a glória!” Outro astro, o ator John Barrymore, sem perder a pose nem no instante iniludível, indignou-se: “Morrer? Eu deveria dizer não, camarada. Nenhum Barrymore permitiria que algo tão convencional acontecesse com ele.” Já James Dean, logo antes da batida do automóvel em que em pereceu, teria gritado: “Meus dias de diversão estão acabados.” Já Charlie Chaplin, quando o sacerdote que o assistia lhe disse: “Possa o Senhor ter compaixão de sua alma.”, teria respondido: “Por que não? Afinal de contas, ela pertence a Ele.”

Por fim, Elvis Presley, que ao final de sua última conferência de imprensa disse modestamente aos jornalistas: “Espero não ter aborrecido vocês.” Quantos milhões e milhões de pessoas neste mundo poderíamos responder: “Jamais!”

Certamente muitas dessas últimas palavras são lendárias. Quem morre doente, senil ou desesperado, por exemplo, não tem espírito para fazer estilo ou pingar gênio em frases de efeito. Quem morre de maneira rápida ou inesperada não dispõe de tempo nem de agilidade mental para elaborar obras-primas de concisão derradeira. Mas isso não importa. A lenda, por colar-se com perfeição a suas personalidades, tornou-se mais real que a realidade.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Jus

O melhor advogado é o que ganha uma causa mentirosa.

Sociedade das aparências

Adriano de Paula Rabelo


No conto “Teoria do medalhão”, Machado de Assis nos apresenta um pai que, após um jantar de comemoração da entrada do filho na maioridade, dá-lhe conselhos sobre como navegar de maneira eficiente em nossa sociedade, a fim de que seu rebento se realize como um medalhão, figura que ele considera a própria encarnação do êxito entre nós. O experiente senhor ensina que, para escapar à obscuridade, o candidato a ser bem sucedido socialmente deve assumir por inteiro aquilo que lhe corresponde na expectativa do vulgo, sufocando qualquer laivo de originalidade e idéias próprias, pois toda a sua ação consiste em manejar com habilidade o vasto acervo de lugares-comuns e convenções fartamente disponíveis e facilmente reconhecíveis entre a massa dos homens. Assim, apenas quando ancorado num realismo pragmático o medalhão poderá trafegar bem por entre a mediocridade geral. Isso é obtido através de sua adesão incondicional à ideologia dominante. Mestre do manejo das aparências, o medalhão não hesitará em lançar mão de frases feitas e fórmulas consagradas, não perdendo nenhuma oportunidade de fazer publicidade dos menores de seus atos. Mesmo o seu riso é codificado: não poderá jamais se aproximar da ironia, que é uma expressão de melancolia e questionamento, mas deve resultar da chalaça, da piada que o faz rebentar numa gargalhada a pregas soltas e que não questiona absolutamente nada. O medalhão mais bem acabado seria aquele que mantém, em seu mais alto grau, a “chateza do bom-tom” e uma “invejável vulgaridade”. O pai arremata sua lição comparando-a com O príncipe de Maquiavel.

De fato, “medalhionismo” pode ser considerado como um maquiavelismo para a vida privada e para a eficiência da navegação social mais rasteira. Tal como o grande pensador florentino, o pai do conto enxerga a humanidade como ela é, e não como gostaríamos que fosse.

Com a genial ironia que lhe é peculiar, Machado sempre põe a nu a melancólica condição do grosso da humanidade. No conto, o alvo mais direto de sua exposição é o bacharelismo exacerbado da elite de sua época, com seu anelo por ascensão social, sua obsessão por cargos e sua voracidade por honrarias e títulos. No entanto, o criador de Brás Cubas transcende em muito o seu tempo, apresentando-nos um fenômeno universal mas que talvez nunca tenha estado tão em evidência como atualmente: a identidade individual determinada por imagens e mitos criados no confronto com a alteridade.


O fundo das aparências para o mercado


Mais que nunca a sociabilidade se processa por meio de aparências e simulacros. Uma simples olhadela numa página qualquer de alguma revista dessas dedicadas ao estilo de vida de nossa high society exporá toda a miséria existencial das celebridades e novos-ricos atualmente em evidência. Mas para além desses panfletos dos grandes medalhões contemporâneos, no âmbito da gente chamada “comum”, percebe-se que também há muitas pessoas empenhando todas as suas forças para fugirem da obscuridade e se fazerem vistas de qualquer maneira. E o caminho para o êxito continua sendo o da vida como um manejo competente de aparências em que não se propõe nenhuma transformação do status quo, mas uma adequação individualista a ele com o fim de se colher dividendos pessoais. Nada mais reacionário que essa filosofia da imagem bonitinha para o mercado das trocas simbólicas que, em última instância, é uma imagem para o mercado tout court, já que hoje em dia tudo se mede por sua “vendabilidade”. Aí estão os reality shows como zoológicos humanos onde cada bicho se esforça pela simpatia do público com o espalhafato da estupidez. Aí está a política como um campeonato de marketing que se sobrepõe ao franco debate dos problemas da sociedade. Aí estão as mocinhas para quem o auge de suas carreiras consiste em posarem nuas para revistas masculinas de grande tiragem. Aí estão os jornalistas capangas do pensamento único, os advogados sofistas, os publicitários do eu, os hipócritas do politicamente correto, os gastadores de gente e as empresas-fornalhas dos recursos naturais... Todos eles exibicionistas de sua boa imagem.

Sem dúvida assistimos ao triunfo da razão cínica, fundamentada na sobreposição do interesse próprio ao coletivo, no narcisismo mais infantil e no descompromisso ético. A superficialidade das relações pessoais e o esgarçamento da vida pública são a decorrência óbvia da prevalência dos comportamentos fundamentados no individualismo e nas aparências. Ou recriamos um novo sentido de coletividade e cidadania – naturalmente inclusivo e emancipador –, ou a visão fatalista dos medalhões nos levará ao colapso e à barbárie. Todos os sinais disso já estão por aí, evidentes, para quem quer ver.