O homem é um produto do meio e dos extremos também.
sexta-feira, 30 de novembro de 2007
Arésio, o valente
Adriano de Paula Rabelo
Minha pequena cadela Pituca, um belo pinscher preto, sempre foi bastante dócil e brincalhona em casa, mas freqüentemente deixa as pessoas impressionadas com sua valentia quando sai para as ruas e encontra outros cachorros. Em muitas ocasiões, vi-a partir para cima de cães enormes que, surpreendidos, puseram-se em fuga. Algumas vezes tive de segurá-la para que não avançasse sobre rothweillers, pit bulls, pastores e até são bernardos. Tendo especial antipatia por poodles, quando os vê pelas ruas Pituca, se não for contida em tempo, de imediato lhes oferece como cartão de visitas uma mordida no pescoço. Gatos, então, quando os vê, persegue-os em disparada, caindo estatelada ao tentar subir, tal como os felinos, nos muros e árvores onde eles se refugiam. Não sei de onde vem essa belicosidade pública.
Meu desabusado cachorrinho me faz recordar uma figura impagável que conheci na infância: Arésio. Baixinho e atarracado, de grandes olhos, cabelo desgrenhado e voz rouca, com esse nome raro Arésio era o valente municipal. Ou melhor, o valente de bairro, pois suas estripulias raramente ultrapassavam os limites do nosso canto de subúrbio.
Uma vez, referindo-se a seus arroubos, ouvi-o se autoqualificar como “impulsível”. De fato esse adjetivo lhe caía muito bem, já que ele era um tipo ao mesmo tempo “impulsivo” e “impossível”.
Não sei por que motivo Arésio foi criado apenas pela mãe, uma figura já velhinha e frágil em meus tempos de criança. Em casa e diante da sacrossanta senhora, ele era o mais afável dos cordeiros. Na rua, entretanto, espaço do perigo e da desordem, nosso amigo se transfigurava. Brigador de excepcionais recursos numa época em que ainda eram raríssimas as armas de fogo nas mãos de qualquer um, Arésio humilhava outros valentões – a maioria homens maiores e mais fortes – com sua agilidade e seus golpes. Ainda hoje não faço idéia de como ele arranjava tantos pretextos para se atracar com seus contendores. Em geral isso ocorria a partir de dissensões que iniciadas em bares.
Sempre tive horror às soluções violentas para os conflitos. Poucas vezes na vida, a maioria delas na infância, uma ou outra vez na adolescência, fui às vias de fato com alguém. Quase sempre isso ocorreu por demandas futebolísticas. Hoje mais que nunca, com o Brasil sangrando cotidianamente por causa da violência sem freios, considero desprezíveis e burros os que, diante de qualquer contrariedade, disparam ameaças, palavrões, bofetadas e pontapés, especialmente sobre gente que não conhecem direito.
Mas voltando a nosso personagem, sua valentia provocava nos meninos do bairro um misto de fascínio e repugnância. E nos deixava intrigados a absoluta ascendência da mãe sobre ele. Certa ocasião em que Arésio esmurrava a cara de um certo Baiano, que estava deitado no chão, ela chegou, trôpega, e simplesmente lhe disse: “Arésio, pára com isso e vamo pra casa!” Como um garotinho obediente que a mãe ordena que vá dormir, ele abandonou o oponente, levantou-se, arrumou a roupa e, de maneira patética, tomou o rumo de casa, cabisbaixo. Baiano deu graças a Deus.

Zoinho, menino de rua de dez anos, enfrenta os policiais de São Paulo - foto de Evandro Monteiro
Falei em futebol logo acima. Na única vez em que quebrei algum osso jogando bola, adivinhe quem foi o autor da proeza? Arésio. Eu devia ter uns nove ou dez anos. Não sei por que cargas d’água estava jogando no gol numa pelada com gente grande. A certa altura, Arésio apareceu cara a cara, a pesada bola de couro quicando a dois metros das traves. Ele simplesmente cerrou os dentes e meteu o pé. Arrojado, tentei salvar o gol, jogando os braços e pulando para defender... A bola bateu com toda força no meu punho, e na mesma hora meu braço esquerdo entortou, doendo agudamente e começando a inchar. A cena seguinte foi correr para casa, levar uma tremenda bronca de minha mãe – que, como sempre, imprecava contra o futebol – e ir para o hospital engessar o braço.
Ainda do futebol vem uma das histórias mais fantásticas de Arésio. Num jogo do Campeonato Mineiro, lá por meados dos anos 1970, o Guarani local jogava contra o Cruzeiro de Belo Horizonte. Ainda hoje as torcidas se misturam quando ocorre esse tipo de partida na cidade. Atleticano de quatro costados, Arésio foi assistir ao jogo com uma camisa do Galo, arqui-rival do Cruzeiro, debaixo de uma camisa comum, sentando-se justamente num local cheio de cruzeirenses, a maioria vinda da capital do estado. Lá pelos quinze minutos do primeiro tempo, ele tira a camisa comum e fica com a alvinegra do Atlético entre as azuis do Cruzeiro. Imediatamente a confusão se estabelece. Queriam dar-lhe tapas, surrá-lo, tirar-lhe a camisa, queimá-la. A certa altura, completamente cercado pela pequena multidão azulada, já quase apanhando, Arésio arranca um revólver da cintura e dispara dois tiros para cima. Ato contínuo, houve a mais espetacular debandada de cruzeirenses, que, atropelando-se uns aos outros, evaporaram-se de suas imediações. Os dois policiais que foram ver o que ocorrera – e que conheciam Arésio – deixaram-no em paz ao verificar que a arma era falsa e que os tiros eram de festim. Com isso, o valente atleticano assistiu tranqüilamente ao resto do jogo, sem ninguém sentado num raio de dez metros de onde ele permanecia com a indefectível camisa do seu time do coração.
Arésio tinha bastante familiaridade com animais perigosos ou peçonhentos. Algumas vezes o vi mexendo em colméias de abelhas sem nenhum tipo de proteção. Costumava criar em casa algumas aranhas, serpentes e mesmo um ouriço. Os mais estimados desses bichinhos tinham até nome próprio. Gostava ainda de se exibir na rua com uma enorme caranguejeira que caminhava por seus braços, ombros e cabeça, causando assombro em nós, meninos, e horror em nossas mães. Houve um dia, no entanto, em que – não me lembro onde nem como – eu e outros garotos pegamos um escorpião amarelo, o mais perigoso de todos. Colocado vivo numa caixa de sapatos, o bicho foi levado até Arésio, que estava em pleno bar, escorado no balcão e rodeados por colegas de etilismo. Já um tanto embriagado, ele devia estar num dos seus dies irae, pois simplesmente abriu a caixa, sacou um canivete e cortou pelo meio o rabo do escorpião, onde fica o ferrão. Seguiu-se, então, uma cena inesquecível: Arésio colocou o animal sobre a mesa, deu-lhe uma forte pancada com a mão, levantou-o no ar, já moribundo, e gritou: “É você que fica machucando os meninos por aí, heim?! Heim?!” Por fim, abriu a boca, engoliu o bicho ainda semivivo e emborcou em seguida meio copo de cachaça, para o estarrecimento de toda a assistência.
E por falar em bar, a última história de que me lembro envolvendo o brutal valentão de província se passou num boteco que ficava de frente para uma casa onde minha família morou por alguns anos. Ali Arésio e seus colegas se reuniam diariamente. Numa noite de sábado, já pelo final da minha adolescência, saí por volta das 21h00. Nessa ocasião os bebedores contumazes deram de cantar todo um vasto repertório de sambas-canção e boleros dos anos 1950 em diante. Repassaram de Nelson Gonçalves a Lupicínio Rodrigues, de Orestes Barbosa a Ataulfo Alves, de Vicente Celestino a Antônio Maria. Quando retornei, já passando das duas da manhã, lá estava o coro de sete ou oito vozes, a esta altura já completamente melodramáticas. Quando me deitei, por volta das 2h30, parece que finalmente todo o repertório havia sido repassado. Sem mais disponibilidade de boleros e sambas-canção, os boêmios dispararam a cantar, como despedida, nada menos que o Hino Nacional...
Pelo fim da adolescência, mudei-me de bairro e, alguns anos depois, de cidade. Contaram-me que Arésio também se mudou, após a morte de sua mãe. Nunca mais o vi. Sua brutalidade valentona e teatral, que tanto me impressionou na meninice, foi para mim não um simples sopro mas uma ventania de vida.
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sexta-feira, 23 de novembro de 2007
Da justiça
Todos os homens são iguais perante a bomba atômica.
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O brasileiro torto
Adriano de Paula Rabelo
Durante boa parte do século XIX, ridículas teorias racialistas originárias dos centros do imperialismo europeu e macaqueadas no Brasil por nossa esbranquiçada casta dominante pregaram a inferioridade das raças originadas fora da Europa ocidental, em especial do negro e do amarelo. Pior ainda era considerada a mestiçassem, que, segundo essas teorias construídas sem nenhum aporte científico, degradava os indivíduos, tornando-os instáveis, obtusos e propensos à violência dos instintos sem controle. Em 1888, Nina Rodrigues, por exemplo, intelectual de grande prestígio pertencente à Escola de Medicina da Bahia, lamentava a seguinte “fatalidade” de nossa formação histórica: “Todo brasileiro é mestiço, quando não no sangue, nas idéias.”
Somente nas primeiras décadas do século XX, com os avanços dos estudos sociais, ocorrerá uma reavaliação do papel da mestiçagem na formação do povo, da sociedade e da cultura brasileira. O ápice desse movimento será a publicação de Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre, em 1933. Nesse clássico da interpretação do Brasil, o sociólogo pernambucano mostra como os portugueses que vieram para o Novo Mundo, mais avançados tecnologicamente, conseguiram submeter o índio e o negro sem deixar de com eles misturar geneticamente desde os primeiros tempos de sua chegada, no século XVI, quando deram início à formação de uma sociedade fortemente marcada pela figura do patriarca. Na seqüência do que comporia uma extensa trilogia, Freyre mostra, em Sobrados e mocambos, a decadência do patriciado rural e o desenvolvimento urbano; e, em Ordem e progresso, a desintegração da sociedade patriarcal e o advento do trabalho livre, o esgotamento do Império e as condições que propiciaram o advento da República. Em grande medida, essa evolução histórica teria se processado, conforme o sociólogo, em virtude da ação do mulato, esse mestiço paradigmático na cultura brasileira, que a partir de então foi revalorizado.
Desde as primeiras manifestações nativistas, nossa especificidade vem se construindo por oposição a uma Europa muitas vezes idealizada em seu racionalismo, classicismo, cosmopolitismo, “pureza” e “superioridade”. Assim nos caracterizaríamos por ser imaginativos, barrocos, antropofágicos, malemolentes, tortos... Talvez esta última qualidade resuma e signifique em profundidade toda uma mitologia com a qual nos identificamos. Muita da nossa mestiçagem de sangue e de idéias, agora reafirmada como positividade, se exprime através de um verdadeiro arquétipo que se construiu em torno do brasileiro torto. Vejamos.
Nosso maior poeta já inicia sua trajetória na literatura com o significativo presságio de um “anjo torto” que, por ocasião de seu nascimento (dele, o poeta), instiga-o para que parta em direção à vida, anunciando que ele será um gauche (esquerdo, desajustado, mal adaptado, desordenado). E assim – como um “gauche no tempo”, na definição de um dos melhores intérpretes de sua obra – Drummond atravessará o século XX construindo uma das expressões fundamentais da cultura brasileira.
Já na era colonial, o brasileiro retorcido se fazia presente. Não por acaso o Barroco proporcionará a primeira manifestação original da arte brasileira. E, na arte barroca, a figura que encarna o gênio nacional por excelência durante os tempos da Colônia é a do mulato Antônio Francisco Lisboa, filho de mãe negra escrava com um arquiteto português, formado como síntese preciosa de culturas diversas. Na idade madura, o surgimento de uma lepra, que lhe corroeu os dedos e as mãos, fez com que o agora chamado Aleijadinho se dedicasse com toda a sua potencialidade humana a sua atividade como escultor, produzindo obras-primas com ferramentas amarradas a seu corpo mutilado.
Outra figura que pode ser vista como gênio torto é o nosso maior escritor, Machado de Assis, filho de pai negro e mãe branca de origem portuguesa; ele pintor de paredes, ela costureira. Pobre, epilético e mulato numa sociedade senhorial e escravista, reunindo várias características de alguém que só poderia se realizar como um pária no Brasil do século XIX, Machado se transformou na expressão mais universal da literatura brasileira, criticando a sociedade de seu tempo com fina e superior ironia, expondo a conduta artificial, insensível e egoísta de nossa casta dominante.
Em Sobrados e mocambos, Gilberto Freyre, ao tratar da ascensão do bacharel e do mulato na sociedade brasileira, registra como o aumento da civilização veio acompanhado por uma onda de sifilização. Assim, nas últimas décadas do século XIX e primeiras do XX, para o sociólogo, foi se urdindo o mito do “amarelinho”, segundo o qual o protótipo do herói brasileiro seria o tipo pequenino, magro, feio, disgênico, “quase um menino, vestido de homem”. Nessa categoria se ajustam perfeitamente três das maiores glórias nacionais: Santos Dumont, Rui Barbosa e Euclides da Cunha, ícones de nossa quintessência impura. Curioso como esse mito do amarelinho se faz presente também no imaginário popular, através de personagens depauperados mas de uma astúcia genial como João Grilo, Pedro Malasartes e Manoel Riachão, ou mesmo na mitificação em torno de figuras históricas como Lampião e o padre Cícero. Por contraste, cultivamos certa aversão pelo herói bonitão, encorpado e eugênico, que praticamente não tem vez em nosso panteão.
Ainda no âmbito do imaginário popular, figuras lendárias como o Saci-Pererê, negrinho mutilado de uma perna; o Curupira, anão de traços indígenas e pés virados para trás; e Macunaíma, o “herói sem nenhum caráter”, são vigorosas figurações de uma psicologia coletiva que extrapola longamente os racionalismos estreitos.
Mas é talvez do futebol que nos vem a confirmação de que o brasileiro anda direito pelos caminhos mais tortos. Para ficar em apenas uns poucos exemplos – um de cada grande etapa da história do esporte no Brasil –, restrinjamo-nos a três personagens extraordinários.
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Pernas de Garrincha, foto tirada em 1964
O primeiro é Arthur Friedenreich, o primeiro craque excepcional surgido nos gramados do país. Filho de pai alemão e mãe negra brasileira, esse mulato sui generis, maior goleador da história do futebol, fez com que, nos anos 1910, época em que o esporte era apanágio de uma elite branca e racista, o país se olhasse e se reconhecesse no espelho. Sobre ele, diz Mário Filho: “A popularidade de Friedenreich se devia, talvez, mais ao fato de ele ser mulato, embora não quisesse ser mulato, do que de ele ter marcado o gol da vitória dos brasileiros [na final do Campeonato Sul-Americano de 1919, primeira grande conquista da Seleção Brasileira]. O povo descobrindo, de repente, que o futebol devia ser de todas as cores, futebol sem classes, tudo misturado, bem brasileiro.”
Se Pelé foi o maior futebolista de todos os tempos, Garrincha foi seguramente o maior fenômeno da história do esporte. Se o sublime crioulo era perfeitamente talhado para se tornar o “atleta do século”, o inexplicável mestiço de índio, negro e branco reunia deficiências que não o qualificavam sequer como peladeiro de rua: pernas tortas, uma bem mais curta que outra, bacia deslocada, baixinho e tendente a gordinho. No entanto, com seu único drible para a direita arrasou defesas compostas pelos mais eugênicos latagões. Freqüentemente deixava estatelados cinco ou seis apolos que tentavam tirar-lhe a bola. Sobre ele e sobre nós, dizia Nelson Rodrigues: “Feliz do povo que pode esfregar um Garrincha na cara do mundo!”
Por fim, Romário, flor da periferia carioca. Baixinho, irresponsável, desbocado, rebelde, indisciplinado, campeão da solércia e da provocação, dentro de campo foi um mago da pequena área, com seus gols de biquinhos e toques sutis em espaços ínfimos de campo preenchidos por zagueiros gigantescos. Praticamente sozinho ganhou a Copa do Mundo de 1994, rodeado por uma das mais sofríveis Seleções Brasileiras do século XX. Fora de campo, nunca se deixou engambelar pela cartolagem mafiosa nem pela imprensa corrupta que são parte do lado podre do futebol. Ao contrário, colocou-os no bolso, fazendo sempre o que desejava e, principalmente, passando-lhes o conto-do-vigário dos mil gols, em que até os tentos assinalados em peladas na praia entraram em suas contas…
Esse mostruário de heróis nacionais parece exprimir em boa medida nossa identidade e nossa psicologia. Os brasileiros sem dúvida preferem a astúcia à força bruta como instrumento de ação política e social. As figuras mais admiradas do nosso panteão são aquelas que transformam seus defeitos ou supostas desvantagens em qualidades especiais, que utilizam muito mais a malícia, a habilidade e a sagacidade do que a arrogância, os punhos e a violência. Quando deixarmos de imitar os centros do ultra-racionalismo e da rapinagem, assumindo nossa sinuosidade essencial, avançaremos como Aleijadinho sobre a pedra, como Garrincha sobre joões: – e enfim nos tornaremos o que somos.
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Adriano de Paula Rabelo
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sexta-feira, 16 de novembro de 2007
Diferença
Todos os indiferentes são iguais.
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Na trilha da mulher fatal
_______________ Adriano de Paula Rabelo
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domingo, 11 de novembro de 2007
Corrente
A vida leva os que levam a vida.
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Da obrigação de ser feliz
Quem assiste televisão, olha os outdoors que infestam as cidades, repara na avalanche de comerciais que soterram a nossa realidade ou comunga de certa filosofia do senso comum pregada pelos grandes meios de informação pode pensar, tal como Pangloss, que vivemos no melhor dos mundos possíveis. A todo momento somos expostos a imagens de gente – em geral jovem – sorrindo, vibrando, curtindo a vida adoidado, existindo no limite da adrenalina.
O totalitarismo mercadológico em que vivemos atualmente resultou na consagração desse bizarro fenômeno do gozo imperativo, sempre associado ao consumo de alguma quinquilharia, alguma forte sensação, algum símbolo de status. Para a doutrinação da massa consumidora, aí estão os publicitários, sumos sacerdotes do credo de que fora do mercado não há salvação. Portanto, “vá além”, “você pode”, “é isso aí”, “no limits”, “just do it”. Estão abolidas todas as angústias, tudo o que pode resultar em luto e melancolia.
Para além do espetáculo da sociedade chamada “de consumo”, no entanto, a vida prossegue muito mais humanizada com seu peso e seus desafios. Isso porque, é claro, em nossa constante projeção rumo ao futuro, nos defrontaremos sempre com a possibilidade do fracasso e do sofrimento e, no limite, com a inexorabilidade da morte. Óbvio que buscamos todos realizar em tempo e a contento os nossos projetos, mas a frustração de expectativas é inerente à própria condição humana. São a perda e a dor dela decorrentes que proporcionam maturidade e melhor aptidão perante as complexidades da existência.
Entretanto, na sociedade de consumo que se consagrou nas áreas urbanas do Ocidente, o que se vê são permanentes apelos ao narcisismo das pulsões mais infantis com o fito de se mobilizar a todos para a compra de determinados produtos e serviços. Com isso o conceito de cidadão vem sendo cada vez mais esvaziado em prol da consagração do consumidor. Um consumidor que se pode definir fundamentalmente como alguém que é obrigado a ser feliz.

Felicidade de propaganda
Sem discutir a lógica perversa do “pago, logo posso” que suprime limites e freios morais de certa casta dominante que se posiciona acima das leis e dos pressupostos básicos da cidadania, gostaria de me deter um pouco sobre essa ditadura da felicidade.
Aparentemente todos têm total liberdade de escolha quanto ao que fazer de suas vidas. Desde que aproveitem o máximo, desfrutem permanentemente dos acontecimentos, das pessoas e das coisas, em resumo, que não sofram jamais – parece estar implícito nessa filosofia de eternos meninões. Para isso, há fórmulas disponíveis para tudo o que se deseja ser e fazer, códigos sobre o que é ser bonito, o que é ser elegante, como se fazer amável, como se tornar um vencedor.
Este é um tempo que cultiva uma série horrores histéricos que, se possível, não devem ser sequer mencionados: a derrota, a solidão, o medo, o silêncio, o vazio, a imobilidade. Com isso, não admira que vivamos na época mais ansiosa e depressiva da história, já que não há psicologia que suporte por muito tempo a performance do júbilo constante.
A todo momento somos bombardeados pela idéia de que apenas com outro alguém, em geral a nossa cara-metade, podemos ser felizes. É preciso apaixonar-se, amar, se entregar o tempo todo. Mesmo a solidão reparadora e enriquecedora da individualidade costuma ser criticada como egoísmo ou fechamento.
A derrota é outro monstro contemporâneo. Todos têm necessariamente de ter objetivos claros e definidos, sempre relacionados à acumulação de capital, prestígio e bens; e realizá-los, chegando na frente dos “incompetentes” que ficam pelo caminho. Do contrário, lhes restará o escárnio e a segregação.
Enfim, todo mundo tem de possuir uma coleção de certezas, desempenhar ousadias pré-fabricadas, ser agitado, estar sempre envolto por algum ruído, preencher o tempo e o espaço, executar alguma tarefa “produtiva”. Principalmente, todos têm de ser felizes a toda hora, tal como no país das maravilhas da tv e do comércio.
Claro que não defendo o apego à escuridão, à melancolia, ao mau humor, à misantropia. Uma programática falta de entusiasmo com a vida seria tão estúpida quanto a felicidade compulsória. No entanto, não consigo imaginar um bem viver divorciado das experiências mais densas da existência, uma adrenalina desvinculada dos riscos inerentes a nossas escolhas, um orgasmo separado de uma mínima convergência de subjetividades, em suma, uma felicidade pela felicidade, desmotivada e fria. O lado agreste, misterioso e violento da vida, sempre presente dentro e fora de nossas individualidades, nos lança desafios e questionamentos a todo instante. Êxito, ousadia, conteúdo e movimento representam, de fato, encarar esse lado escuro com respeito e dignidade. Somente à possível felicidade daí decorrente se pode qualificar como autêntica.
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sexta-feira, 2 de novembro de 2007
Cerração
As doutrinas dispensam os olhos.
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O nacional no global
O advento da era tecnocrática na segunda metade do século XX gerou este fenômeno que agora chamamos de globalização, cujos aspectos essenciais são uma série de dogmas nas esferas política e econômica: um neoliberalismo que preconiza o arrombamento das economias dos países subjugados em prol do vampirismo imperialista, a total liberdade de movimento para as grandes corporações e o capital especulativo (para os quais não existem fronteiras), o encolhimento irresponsável do Estado e a cassação dos direitos dos trabalhadores em benefício do livre mercado e dos extremos de opulência da plutocracia mundial, a prescrição de um único estilo de vida e modelo de civilização para todos os quadrantes da Terra, o monolitismo reacionário de pontos de vista por parte dos grandes meios de informação. Nessa conjuntura, o sufocamento a que os povos do mundo inteiro têm sido submetidos vem provocando um fortalecimento do nacionalismo, fenômeno que se manifesta sobretudo no âmbito cultural. A questão é bastante complexa e, como tudo, deve buscar se resolver através do encontro da justa medida.
Por um lado, a valorização de nossas tradições, de nossa cultura popular e do nosso modo de ser e lidar com a realidade jamais poderá admitir a desvalorização da cultura alheia ou o culto às rivalidades nacionais. Por outro, há que se ter bem claro que as grandes obras artísticas, as descobertas científicas que fazem a humanidade dar um salto para uma existência melhor, as invenções que aproximam as pessoas pertencem a todos os povos, a todas as culturas. Sem dúvida, a burrice é sempre nacional; a inteligência, o talento, a sensibilidade maior são sempre universais.
O escritor italiano Italo Calvino, analisando uma série de definições para o termo “clássico” na esfera da literatura, constata que as grandes obras “servem para entender quem somos e aonde chegamos e por isso os italianos são indispensáveis justamente para serem confrontados com os estrangeiros, e os estrangeiros são indispensáveis exatamente para serem confrontados com os italianos”. A esse propósito, vale lembrar que muito daquilo que de melhor a cultura brasileira tem produzido – movimento modernista, Cinema Novo, Bossa Nova, Tropicalismo – tem se realizado pelo diálogo criativo e a confrontação com as culturas estrangeiras.
Contudo, em grande parte o nacionalismo cultural preconiza uma oposição direta ao lixo da indústria cultural de massas, em especial o megavolume de porcarias da música, do cinema, da televisão, da literatura, do jornalismo, do esporte, das redes de comidas rápidas, das seitas protestantes, dos conceitos comerciais, da linguagem e da moda originárias dos Estados Unidos e que representam o pior da cultura americana.
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EFCB – Estação de Ferro Central do Brasil (1950) – Tarsila do Amaral
Os meios de comunicação de massas têm assumido cada vez mais a condição de espaço público das sociedades globalizadas. Como tudo, muitas expressões culturais também vão se identificando como mercadoria e buscando na mídia o canal para seu consumo por parte da maioria da população. Para isso, os chamados “produtores culturais” não hesitam em fazer todas as concessões à baixeza e ao popularesco, inundando, por exemplo, a televisão, grande produtora de vigências do nosso tempo. Como resultado, a cultura erudita fica enclausurada em guetos acadêmicos e espaços elitizados nas cidades mais desenvolvidas, e a cultura popular se vê enfraquecida e identificada com os velhos e os marginais das periferias urbanas e zonas rurais. Não por acaso, tudo isso acontece em paralelo ao debilitamento de outros instrumentos de participação política, como os sindicatos, a imprensa pluralista, os partidos e os movimentos sociais.
O salutar diálogo com a cultura estrangeira está longe significar uma redução ao consumo da pasteurização americana. Muito teríamos dizer e a ouvir em intercâmbios com a América Latina, a África e o Oriente, especialmente. Muito teríamos também a dizer aos Estados Unidos e à Europa, e não somente a ouvir e a receber. E muito temos obviamente a nos enriquecer com o acervo cultural que vai além do descartável produzido por esses centros ocidentais.
O fenômeno do sufocamento globalizante atinge mesmo o centro da globalização. Os Estados Unidos são de uma homogeneidade cultural acachapante. E mesmo Estados mais tradicionais e estruturados não estão conseguindo deter a epidemia de mesmice que se alastra pelo mundo e que ameaça tornar-se crônica. Tanto que o delegado francês na reunião do GATT de 1993 disse melancolicamente em seu discurso: “A França pode deixar de produzir batatas e continuar sendo a França, mas se deixarmos de falar francês, de ter um cinema, um teatro e uma literatura própria, nos converteremos em mais um bairro de Chicago.”
Como enfrentar o monstro? Lutando por democracia efetiva através de ações que busquem quebrar o poder da elite tecnológico-econômica que detém os espaços decisórios. No caso do Brasil, a questão passa ainda pela conquista dos mais básicos direitos da cidadania, principalmente o de um sistema de educação pública de qualidade, pois um dos pilares dessa predominância avassaladora da cultura de massas é a decadência do ensino e o desconhecimento dos clássicos de nossa tradição artística e de pensamento. Políticas de Estado devem atuar em defesa das manifestações das culturas popular e erudita. E o espaço público deve ser revitalizado como lugar seguro e propício ao encontro entre as pessoas, ainda mais num país amplo e solar como o nosso. As praças, as ruas, os parques, os espaços públicos virtuais precisam retomar sua função de local onde se constrói uma intersubjetividade e um consenso livres que sejam a verdadeira voz da coletividade. E somente pelo viés da efetiva democracia o nacional e o global se complementarão com harmonia e verdade.
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Adriano de Paula Rabelo
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