A canção de amor de apelo popular pressupõe quase sempre que o sujeito lírico assuma uma postura de certa ingenuidade. Na tradição musical brasileira, um gênero marcou profundamente todo o século XIX e os primeiros anos do XX: a modinha. Tal gênero, cujas origens remontam ao século XVIII, conheceu grande voga tanto nos salões bem comportados das classes abastadas, executado em saraus, quanto nas ruas, composto e cantado em especial por mulatos, sendo por muito tempo executado em serenatas. O auge da modinha ocorreu durante a época do Império, período com que ela se identifica bastante.
Na segunda década do século XX, as transformações urbanas e o avanço da tecnologia de reprodução dos sons acabou por modificar profundamente o ambiente em que a modinha se desenvolveu e se estabeleceu. Além disso, o advento do samba e das primeiras gravações representou o fim da modinha e dos eventos que proporcionavam a sua performance.
Os títulos de clássicas modinhas, alguns de um saboroso pitoresco, dão uma boa idéia de seu universo e de seus temas recorrentes, sempre temperados por muito lirismo, sentimentalidade e, às vezes, humor: “Tão longe, de mim distante”, “Quis debalde varrer-te da memória”, “Lembranças do nosso amor”, “Belas baianas”, “Vai cruel em braços doutros”, “Prazeres que eu não sonhava”, “Cozinheiro art nouveau”. Uma simples atenção ao léxico desses títulos basta para nos remeter de imediato a um tempo antigo, em que as formas de expressar os sentimentos eram diversas daquelas consagradas pela vertente predominante do Modernismo, movimento que renovou todo fazer artístico no Brasil.
Dentre todas as modinhas, talvez a mais célebre seja “Casinha pequenina”, de autor desconhecido, composta no final do século XIX e gravada em disco pela primeira vez em 1906, por Mário Pinheiro. Posteriormente ela faria parte do repertório de um variado número de intérpretes, como Bidu Sayão, Beniamino Gigli, Paraguassu, Sílvio Caldas, Radamés Gnatalli, Cascatinha e Inhana, Nara Leão e Rogério Duprat. Recentemente tive acesso a uma bela interpretação da dupla belo-horizontina Renato Motta e Patrícia Lobato. Detenhamo-nos brevemente sobre a letra:
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Tu não te lembras da casinha pequenina
Onde o nosso amor nasceu?
Tu não te lembras da casinha pequenina
Onde o nosso amor nasceu?
Tinha um coqueiro do lado, que coitado
De saudade já morreu.
Tinha um coqueiro do lado, que coitado
De saudade já morreu.
Tu não te lembras das juras e perjuras
Que fizeste com fervor?
Tu não te lembras das juras e perjuras
Que fizeste com fervor?
Daquele beijo demorado, prolongado
Que selou o nosso amor.
Daquele beijo demorado, prolongado
Que selou o nosso amor.
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Construída com o emprego de diversos topoi do romantismo, a canção possui como que ambientação e clima de romance de José de Alencar, transportando-nos para o reino da pessoalidade, do subjetivismo, do emocionalismo. Dois elementos paisagísticos se destacam em “Casinha pequenina”: a própria casinha e o coqueiro. Temos aí o refúgio da civilização e a integração na natureza. Desligando-se da sociedade e voltando-se para a própria interioridade, o sujeito da canção se coloca praticamente na condição de centro do universo. Os dois elementos que marcam a paisagem remetem de imediato à geografia brasileira, valorizando a cor local, os aspectos pitorescos de nossa nacionalidade.
Estabelecido o local onde os dois amantes vivenciaram seus grandes momentos – um verdadeiro mundo particular –, a emoção transborda num apelo à lembrança dos eventos que marcaram seu relacionamento: as “juras e perjuras” feitas com “fervor” e, principalmente, o “beijo demorado, prolongado” que sacramentou seu amor, sentimento que é exaltado e elevado à condição suprema de quintessência da vida.
A simplicidade do vocabulário e da construção dos versos, bem como o tom menor da dicção poética, aproxima o texto da linguagem coloquial. Tais elementos, juntamente com a dupla métrica, denotam uma grande liberdade de criação e uma recusa a padrões consagrados de construção textual.
Como se viu, o sujeito da canção apela para a memória da pessoa amada, referindo-se a elementos paisagísticos e a acontecimentos localizados no passado. Por certo estamos diante de um amor que não se realizou na continuidade e na felicidade prometida. A corroborar essa interpretação estão a necessidade de se apelar para a lembrança do que passou e, em especial, o triste destino do coqueiro, que significativamente morreu de saudade. Ademais, alguém que apela à lembrança de juras e perjuras, só o faz porque elas não foram cumpridas. Temos aí uma materialização do chamado mal-do-século, ou seja, a impossibilidade de realização de nossas mais puras aspirações neste mundo hostil. Por isso um tom de melancolia perpassa toda a canção.
Mário de Andrade certa vez definiu a modinha como “um suspiro de amor”. Esse que foi historicamente o primeiro gênero a se definir na música popular brasileira, como se viu, deixou de existir no início do século XX, mas deixou larga influência em nossa música, seja nos transbordamentos românticos do samba-canção, seja no lirismo mais comedido da bossa nova, seja no estabelecimento de posturas e temas que se tornaram clássicos na canção de amor brasileira.
5 comentários:
Prefiro você assim, mais lírico que dramático.
Prefiro-o mais dramático que lírico.
Gosto muito da simplicidade como antigamente se expressava o amor nas canções... Triste de um tempo como o nosso que despresa tanto o amor. Vc captou bem o esp'irito da modinha Casinha Pequenina.
Essa cançao é uma graça, Adriano. Pena que a memória musical do brasileiro (como a memória de um modo geral neste país) seja tão curta. Precisamos resgatar a beleza desse romantismo.
Delicada, triste e comovente a Casinha Pequenina.\
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