sexta-feira, 20 de julho de 2007

Sobre temas cruéis na literatura

Adriano de Paula Rabelo


Às vezes somos surpreendidos por alguma mentalidade de Poliana que reclama contra as obras de arte que apresentam uma visão pouco açucarada da vida. Dizem que esta já possui muito sofrimento e atribulação. Sendo assim, por que chafurdar em sangue e ignomínia?

Em primeiro lugar, já se disse que não se faz literatura, política e futebol com bons sentimentos. De fato, veja-se o imenso manancial de ódios que fervilham nas obras de Shakespeare, compreenda-se a ética da virtù em Maquiavel ou a necessidade de às vezes se ter de “baixar o pau” para vencer nos gramados e se constatará que isso é a pura verdade.

Nesta cultura da aparência, da mercadoria e do espetáculo há um permanente esforço para se banir a tristeza como dimensão natural de certos processos vitais. Isso é, no mínimo, uma tremenda alienação. Obviamente estamos muito longe de viver no melhor dos mundos possíveis, a normalidade entre o rebanho humano infelizmente é a estupidez, e a violência é praticada em extensão e grau cada vez mais inacreditáveis. Numa realidade assim, como se recusar a tomar consciência da dor? Ademais, as derrotas, as frustrações e a tristeza não são justamente contingências que todos nós, em maior ou menor intensidade, temos de enfrentar inclusive como forma de autoconhecimento, como meio de aprender e valorizar o triunfo e a glória?

Os personagens da literatura nos fascinam tanto porque são vidas incandescentes, vividas em suas últimas conseqüências. Eles realizam tudo o que não podemos diante das convenções, da segurança, das tradições, das pressões do trabalho, das limitações físicas e culturais. Édipo vai fundo na investigação de sua sórdida origem, Antígona se contrapõe sozinha às leis do Estado em nome das sagradas e anteriores leis da família, Dante adentra no Inferno para ascender até o Paraíso e reverenciar Beatriz, Otelo inunda-se do ciúme provocado pelo sórdido Iago e mata sua amada Desdêmona, D. Quixote perambula pela Espanha pleno de nobreza e ridículo, Raskólnikov assassina uma velha usurária na crença de que se tratava de uma inútil e é perseguido pela necessidade de redenção por sua miserável condição humana, Madame Bovary sufoca-se com a mediocridade do marido e o trai em busca de romantismo e sensação, Brás Cubas confessa cinicamente todo o vazio de sua vida e imoralidade de sua classe. Todas essas figuras magníficas ultrapassam em muito os limites em que se enquadram nossas vidas domesticadas e tributáveis, realizando, com sua expressividade referencial, todo ímpeto de absoluto, egoísmo, aventura, graça, ódio, pureza, violência, infinitude e escândalo que se agitam no espírito de cada um de nós e que tanto medo provoca nos mais frívolos.


Ulisses e as sereias, episódio da Odisséia, de Homero

A grande literatura não se recusa à crueldade justamente porque, sendo uma recriação da vida, tem como objeto algo que está longe de ser um parque de diversões, assim como nossa psicologia profunda está muito distante de ser um repositório de gracinhas e pulsões edificantes. E a beleza é, muitas vezes, aterradora e desnorteante.

Claro que qualquer um tem o direito de cultivar coisas como as historinhas cor-de-rosa, o divertimento novelesco ou a superficialidade pragmática da auto-ajuda. Nesta época de extensivo analfabetismo funcional, isso já é alguma coisa. Mas o problema está em permanecer apenas na banalidade divertida e recusar-se ao empenho pela fruição de uma imitação mais profunda da vida. Seria como eleger o laguinho do parque da cidade como a paisagem aquática dos nossos horizontes, criticando o oceano por sua excessiva grandeza, profundidade, violência e mistério.

A literatura, como qualquer outra forma de arte, não tem nenhum compromisso com o agradável, o bonitinho, o álbum de moça, o politicamente correto, a receita de bem viver. Quando ela tenta ser conveniente, geralmente falha e se torna leitura descartável. O escritor que mexe com a gente e atravessa gerações é sempre aquele que, expressivo e original, revolve o caudal das paixões humanas consciente de que temos uma complexidade psicológica muito maior que a de Papai Noel e um destino muito mais rico de possibilidades que o do Coelhinho da Páscoa.

9 comentários:

Anônimo disse...

Muito bem. A literatura não será jamais a disneilândia das artes.

Anônimo disse...

Tem dias que não estou para ler livros pesados ou filmes cheios de sofrimento. Quero apenas me divertir ou aprender para a vida. Não fale assim da autoajuda.

Anônimo disse...

Concordo plenamente com o 2que vc diz. Quem não quer verdadeira literatura que vá ler o Paulo Coelho ou o Harry POtter.

Anônimo disse...

Pare com essa mania de ser chocante.

Anônimo disse...

Você foi muito expressivo e profundo ao dizer que a beleza muitas vezes é terrível, forte e cruel.

Anônimo disse...

Pare com essa mania de ser inteligente. Seja bom.

Anônimo disse...

Vc ja'leu O Caminho de Santiago?

Anônimo disse...

Vc é o Adriano, que fez doutorado em Literatura na USP?

Anônimo disse...

Gostei do seu blog. Vou retornar outras vezes. Parabéns.