Estou convencido de que neste país onde campeiam todos os horrores e onde somos feitos de palhaços cotidianamente só não enlouquecemos todos ou nos suicidamos coletivamente por causa de nossa forma de encarar a vida e de nos relacionar. Sérgio Buarque de Holanda tornou-se célebre por sua teoria do brasileiro como um “homem cordial”, aquele que se sente muito pouco à vontade ao entabular relações impessoais e muito formais com os outros e que age pelo sentimento e pela emoção (“cordial” vem do latim cor, “coração”). O famoso historiador via com grande pessimismo esse traço fundamental de nosso caráter, que está na base de muitas de nossas grandes mazelas, como a confusão entre o público e o privado, a aplicação das leis conforme a qualidade de seus infratores, o populismo, a péssima representação das camadas sociais desfavorecidas no governo. No entanto, como tudo tem ao menos dois lados, nosso personalismo e nossa informalidade também fundamentam o melhor daquilo que nossa civilização tem produzido.
Historicamente temos resolvido nossos conflitos de forma carnavalizada, recusando-nos a cultivar ódios, rancores e traumas seculares. Com isso, a despeito de as grandes transformações de nossa sociedade terem se processado a partir de acordos para reacomodar as coisas conforme os interesses das elites, acredito que, sem desprezar o passado, somos uma coletividade voltada para o presente e o que podemos nos tornar no futuro. Produzimos uma cultura ímpar que nada tem de inferior à do Velho Mundo. Temos unidade lingüística e de sentimento nacional num território muito vasto. Nossa visão de mundo tende à ironia e ao picaresco. E inventamos o “jeitinho brasileiro” como forma de navegação na burocracia dos donos do poder.
De fato, buscamos sempre lidar com pessoas e não com funções, não com terninhos e gravatinhas, não com batinas, fardas ou decotes. Claro que vivemos numa sociedade rigidamente hierarquizada e supremamente injusta. Só não saímos por aí cortando cabeças e chupando o sangue de nossa oligarquia brega, que pensa que o povo é para ser gasto como combustível, porque até mesmo nela enxergamos o ser humano com todas as suas contradições. Mas ela que tome cuidado!
Nossa forma de relacionamento, diferentemente das culturas imperialistas, é a que reconhece no outro um nome e uma história. Preservamos uma delicadeza e uma receptividade no trato que o Velho Mundo, por exemplo, em sua esclerose e em sua burrice, já perdeu há muito tempo. Por isso, talvez nunca nos sintamos tão brasileiros como quando estamos no exterior, especialmente no chamado Primeiro Mundo. Lembro da história de uma amiga paulistana de formas exuberantes que foi passar uma temporada de estudos na Alemanha. Certo dia em que a saudade do Brasil apertava, ela caminhava devagarinho, olhando para o lado de forma furtiva, perto de uma construção onde umas duas dúzias de homens trabalhavam. Não lhe fizeram nenhum gracejo, não lhe concederam nem a esmola de um olhar. Que fez ela? Sentou-se num meio-fio e chorou copiosamente.
Operários (1933) – Tarsila do Amaral
Vejam os nomes dos jogadores da Seleção Brasileira. Os de outros países são conhecidos publicamente por um imponente nome de família. Os nossos por apelidos ou pelo primeiro nome. Nossas maiores glórias se tornaram conhecidas não somente por apelidos como por seus nomes dos tempos de criança: Pelé, Garrincha, Zizinho, Didi, Vavá, Jairzinho, Dadá, Ronaldinho, Kaká.
Veja a qualidade da nossa ironia: pessoas que se amam se insultam ironicamente. Assim, quando dois amigos se encontram é quase certo que se “agredirão”, um xingando de forma cordial as origens, a sexualidade ou o caráter do outro. Logo depois se abraçarão estrepitosamente e iniciarão a conversa. Nosso senso de humor freqüentemente é autodepreciativo, na base de “o brasileiro não tem jeito mesmo” ou “só no Brasil mesmo”, o que faz do brasileiro e do Brasil entidades excepcionais. Um estrangeiro que visse e ouvisse tais coisas por certo ficaria muito intrigado ou até mesmo chocado. Mas talvez seja por essa auto-ironia que nossa história é relativamente isenta de nacionalismos infames.
Lembro-me de uma ocasião, há alguns anos, num ponto de ônibus. Era fim de tarde. As pessoas retornavam do trabalho com ar sério e cansado. A presença, entre outros, de um anão dava um tom de excepcionalidade ao pequeno aglomerado. Até que chegou, meio cambaleante, a figura destemperada de um bêbado. Ao ver o anão, o ébrio apontou-lhe de repente o dedo e disparou: “O que é que você vai ser quando crescer?” Por mais politicamente corretas que fossem as pessoas ali, todos, inclusive o anão, dispararam a rir daquela impertinência tão tipicamente brasileira.
Quem nunca ouviu, numa fila qualquer, duas senhoras a conversar longa e prazerosamente sobre suas diversas doenças e achaques, numa competição de sofrimentos? E nossa incapacidade de dizer não? E nossa mania de nos despedir e continuar no ambiente, tomando parte na conversa e na ação? E nosso convite retórico para que outrem passe por nossa casa “qualquer dia desses”? E nossa arte marcial dançada?
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Soltando balão – Ailton das Neves
Paulo Prado considerava que somos um povo triste. Os estrangeiros, por sua vez, invariavelmente nos vêem como alegres viscerais. Por certo nos situamos em algum lugar entre tais extremos, ou os sintetizamos. Falei acima da ironia, esse humor dos tristes, e do picaresco, esse humor troppo allegro, como fundamentos de nossa visão de mundo. Nosso lado triste advém de nossa histórica incapacidade de, numa natureza muito generosa, proporcionar dignidade de condições de vida e cidadania efetiva para a maior parte da população. Nossa porção alegre decorre da consciência de havermos construído todo um sistema civilizatório original e único, amalgamando distintos e conflitantes universos de cultura. A fecundidade daí resultante nos dá esse sentimento permanente de que, apesar de todos os horrores e das palhaçadas nacionais, temos uma muito melhor destinação histórica a realizar.
11 comentários:
Foi com essa informalidade e esse personalismo que criamos uma civilização da qual realmente temos de nos orgulhar, apesar dos crápulas que nos governam fazerem de tudo para que tenhamos nojo do Brasil. Parabéns pelo artigo.
Pelo que vc fala o brasileiro é mais ou menos alegre, mais ou menos triste. Que bobagem. Somos um povo alegre, seu texto mesmo dá varios exemplos disso. Dê um pulinho na Bahia e vc verá o quanto de alegria existe no Brasileiro. E pare de dizer bobagens.
Você toca em duas questões muito mal compreendidas na cultura brasileira: o "homem cordial" e o "país do futuro", temas que geralmente são tratados com escárnio por nossos intelectuais, que parece não terem entendido nada do que os autores quiseram dizer. Seu texot testemunha que você entendeu bem as idéias de Sérgio Buarque e de Stefan Zweig, ainda que as critique e não concorde com eles.
Seu comentário sobre os nomes dos jogadores da seleção é fantástico. É muito engraçada essa nossa maneira de lidar com os nomes, inclusive nas situações públicas e formais.
Já morei nos Estados Unidos, e essa diferença de informalidade e personalismo a nosso favor foi o que me fez retornar ao Brasil. Calor humano é insubstituivel.
Seu texto é superficial e tenta ver alguma coisa que vale a pena neste lixo de país.
Como dizia o de Gaulle, o Brasil não é um país sério.
Demais. É realmente por nossa pouca formalidade, pelo jeitinho e pela bossa que suportamos esse país onde o absurdo dos absurdos é a normalidade.
O brasileiro na verdade é um acomodado, um pacífico que aceita toda essa corrupção sem fazer nada. Desse jeito só essa país só vai piorar.
Você fala como quem gosta do Brasil e reconhece a essência da brasilidade, mas tem raiva da canalha que manda e desmanda no país. Como você, muitos já chegaram ao máximo da indignação. Só não se pode aceitar tanta sacanagem como coisa invencível. É preciso mobilização das pessoas dignas e pensantes.
Achei meio superficiais seus exemplos para ilustrar a brasilidade.
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