No próximo dia 6 de julho, fará cem que nasceu, na periferia da Cidade do México, uma artista e uma personalidade das mais fascinantes da história da pintura: Frida Kahlo. Sua vida e sua obra foram profundamente marcadas pelo acidente que ela sofreu aos dezoito anos e também por seu relacionamento amoroso com o pintor Diego Rivera. Grande parte da obra de Frida é composta por auto-retratos em que ela reelabora expressivamente seu sofrimento e sua paixão.
Gostaria de me deter aqui num quadro da pintora, obra inesgotável que sintetiza a sua história. Trata-se de “O Hospital Henry Ford ou A cama voadora”, de 1932.
Como se sabe, em 1925, no choque entre o ônibus em que viajava e um bonde, Frida Kahlo teve a região da pélvis trespassada por uma barra de ferro que rompeu-lhe a coluna vertebral em três lugares na região lombar, além de fraturar-lhe vários outros ossos. Essa fatalidade mudou completamente o curso de sua existência, fazendo com que fosse abandonado seu projeto de tornar-se médica. Como agravante, ela foi informada de que jamais poderia ter filhos através de parto normal, recebendo a recomendação de não engravidar.
Cinco anos depois, no entanto, já casada com Rivera, Frida engravidou e teve de realizar um aborto por razões médicas. Em 1932, por ocasião de uma temporada de trabalho do pintor nos Estados Unidos, ela ficou grávida novamente. A despeito das recomendações dos médicos e da oposição de Diego, Frida resolveu levar adiante a gestação e ter o filho. Foi uma tremenda frustração quando, poucos meses depois, ela perdeu a criança que tanto desejava. Essa experiência traumática foi retratada posteriormente pela pintora no quadro a ser brevemente analisado aqui.
O Hospital Henry Ford ou A cama voadora (1932) – Frida Kahlo
A obra mostra Frida Kahlo completamente sozinha, deitada no leito do hospital, localizado na cidade de Detroit, no momento em que ocorre a perda do filho. A cama é bastante grande em relação a seu corpo, como a ressaltar sua pequenez, fragilidade e desamparo. A completa nudez da artista – bem como sua solidão – remete a um momento essencial, de encontro com seu eu profundo, em que todas as máscaras sociais caíram. Inscrições na frente e na lateral do leito situam com precisão o acontecimento no tempo e no espaço: “Julho de 1932, FK”, “Hospital Henry Ford, Detroit”.
Frida está bem à beira da cama, significativamente bastante próxima de uma queda. Tem a barriga protuberante de sua gravidez de três meses. O lençol branco sob seu corpo está muito ensangüentado, não somente indicando a perda física do bebê, mas sugerindo o esvair-se da própria vida da artista. De seu olho esquerdo escorre uma enorme lágrima, o que por si só representa a imensa dor de uma mãe pela perda do filho. O rosto escuro e sombrio exprime toda a desesperança que ela traz na alma.
Pela mão esquerda da pintora – também representada em grande tamanho – passam três fitas vermelhas que lembram veias ou artérias, ligando três objetos que flutuam no ar a outros três posicionados no chão, todos eles símbolos de sua gravidez falhada e de sua impossibilidade de ser mãe. No ar está um modelo anatômico da parte inferior da coluna vertebral e do sistema reprodutor feminino que se liga a uma pélvis óssea no chão, à direita, testemunhos da causa corporal do aborto sofrido. Em seguida, um feto do sexo masculino, também de enorme tamanho, como a representar sua importância no universo afetivo da mãe, está ligado a uma flor violeta murcha no chão. O bebê morto e a flor sem nenhuma vitalidade são imagens eloqüentes da perda sofrida pela artista. Por fim, um caramujo, animal que nas culturas indígenas mexicanas representa a concepção, a gravidez e o nascimento, liga-se a um esterilizador a vapor tal como os que eram utilizados em hospitais nos anos 1930 para selar tanques de gás ou de ar comprimido. Provavelmente Frida fez uma associação entre o mecanismo de selar e seu próprio sistema reprodutor defeituoso, que não lhe permitia completar com êxito uma gravidez.
Note-se ainda que ela está deitada no lado esquerdo da cama e que toda a cena é vista em referência à esquerda da personagem central. Essa insistência no lado esquerdo denota a natureza gauche de Frida, muito especialmente no que tange a sua impossibilidade de levar uma vida “normal”.
A solidão, a vulnerabilidade e a desolação da pintora são levadas ao paroxismo quando se observa a paisagem em que ela está inserida. No primeiro plano, à parte do horizonte industrial e desprovido de qualquer referência humana representado ao fundo, está uma planície desértica em completa aridez. Nessa planície, que reflete o estado de espírito de Frida, a cama aparenta flutuar, razão do título do quadro. Já o complexo industrial, reino do progresso tecnológico e da competição capitalista, em sua frieza, contrasta grandemente com a tragédia da artista, com sua destinação humana. O céu nublado e cinzento parece anunciar a iminência de chuva.
Com a passagem dos anos, aumenta sempre mais a minha admiração por Frida Kahlo, que é minha pintora favorita. Como poucos artistas, ela foi uma poeta das tintas e uma poeta da vida. Ultrapassou grandes dores e grandes perdas, amou superiormente seu homem e por ele foi amada, realizou uma obra de arte original e eterna através do diálogo com seus traumas, juntou expressionismo e cultura indígena mexicana num amálgama perfeito, atuou politicamente contra todas as formas do totalitarismo, foi uma precursora do alargamento dos horizontes da mulher. Acima de tudo, foi uma artista e um ser humano excepcional que superou graves limitações por meio de uma sensibilidade superior e um imenso amor pela vida.
11 comentários:
Belíssima análise, Adriano. E vc é realmente um apaixonadíssimo pela maravilhosa Frida.
Frida Khalo era uma masoquista de mal gosto assim como vc. é sempre sofrimento e tragédia como se não bastasse o que já passamos todo dia. ninguém mais fala de coisas bonitas e agradáveis. o sofrimento dela é algo particular que devia ter sido sofrido e guardado apenas por ela e sua família.
Só quem tinha muito amor à vida e uma infinita paixão no coração pode enfrentar tudo o que ela enfrentou e ainda criar uma obra tão extraordinária. Frida nos mostra onde o ser humano pode chegar quando não amesquinha a sua vida. Brilhante a sua análise.
Só ela sabe o que passou com o acidente na adolescência e com a perda do filho tão desejado. Seu artigo sobre o quadro nos fez sentir todo sofrimento da Frida. Sua análise me fez chorar de emoção. Ela foi realmente uma grande artista.
Sua análise é ótima, mas faltou falar nas cores de Frida, que transmitem toda a riqueza e o espírito solar da latino-americanidade.
Meu caro amigo e querido professor,
Também nós temos muita saudade de você. Sei que ainda estou em dívida pela tradução, mas vai chegar, não sei quando, mas chegará.
Um abraço
Nirma
Demais, Adriano. Só mesmo no mundo da arte e na profunda transcendência de que o ser humano é capaz é possível uma Frida Kahlo ser a enorme pintora que foi, ou Aleijadinho ter sido escultor sem mãos, ou Beethoven ter sido compositor surdo, ou Garrincha ter sido um jogador genial com seis centímetros a menos numa das pernas e com a bacia deslocada...
Cara vc gosta de tragedia heim...
O quadro é muito simbólico e complexo. Nunca imaginei que havia tanta coisa nele.
Otima análise Adriano.O senhor e um otimo observador.
A sua analise me auxiliou muito no trabalho escolar. Obrigada.
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