sexta-feira, 18 de maio de 2007

Doc

Adriano de Paula Rabelo

Pouco tempo depois de ter ido viver na cidade de São Paulo, em meados dos anos 90, conheci Doc no centro de práticas esportivas da universidade. Talvez o enorme contraste de nossos temperamentos, visões de mundo e opiniões nos tenha aproximado. Seu anticonvencionalismo e senso de humor sempre surpreendente, ao lado de minha seriedade, certa contenção e temperamento propenso ao satírico, acabaram por nos fazer em pouco tempo grandes amigos. Doc é uma das pessoas mais originais, mais honestas e mais imprevisíveis que tenho encontrado. Dele guardo uma antologia de histórias hilariantes.

Transbordante de tensões edipianas, obsessões sexuais e complexos ululantes, Doc, que pertence à segunda geração de uma família de imigrantes do sul da Itália, tem uma atração inexorável por “japonesas”, ou seja, toda e qualquer oriental de olho puxado, etnia tão comum na Paulicéia. Sua explicação para o fenômeno: quando era criança, o pai teria tido uma amante “japonesa”. Sua mãe, ao tomar conhecimento do affair, aprontou um escarcéu, dizendo horrores das orientais. Ao crescer, desejando compreender os motivos da traição paterna, nosso amigo quis possuir o máximo de “japonesas” possível.

Devo acrescentar ainda que Doc é palmeirense e deprimido. A propósito, me vem à lembrança duas outras histórias suas. Certa vez, tendo conhecido uma “japonesa” em Santos, marcou encontro com ela em São Paulo, na tarde do domingo seguinte, tendo arranjado tudo para levá-la a um motel. Encontraram-se após o almoço, namoraram brevemente e foram para o dito estabelecimento, lá chegando um pouco antes das 16h00. Acontece que o Palmeiras jogaria exatamente às 16h00, pelo Campeonato Brasileiro, com transmissão ao vivo pela televisão. O que fez o conquistador? Ligou a tv, sentou-se com a consorte na cabeceira da cama e assistiu a todo o jogo, vibrando com as jogadas de seu time. Somente após o apito final é que ele tomou as devidas providências. Resultado: a “japonesa” nunca mais quis vê-lo.

Quando o Palmeiras foi campeão da Copa Libertadores da América, em 1999, fui com Doc ao Parque Antártica, assistir à final, que foi eletrizante: um 2x2, com disputa de pênaltis. Ao lado de uma linda torcedora de seu time, que nunca tínhamos visto antes, ele vibrava. A cada gol, os dois se abraçavam e se beijavam. Ao final, lá estavam eles atracados num beijo de língua, para festejar o título.

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“Arlequim”, ilustração de Napoléon Aubin publicada no periódico canadense Le Fantasque em agosto de 1837

Dono de uma boneca inflável a que deu o nome de Dóris, com ela Doc vivia um tórrido relacionamento. Tendo cursado três cursos de graduação e deixado mais um pela metade, sempre que conhecia uma garota e iniciava a corte, ele costumava dizer que exercia a profissão de coveiro, pela qual dizia ter absoluta vocação e na qual se realizava plenamente como profissional. Perguntado por que mentia, nosso amigo dizia que era para ter certeza de que o possível amor que a cortejada viesse a desenvolver por ele era verdadeiro. Certa ocasião, tendo encontrado uma moça evangélica que muito falava na Bíblia, conseguiu convencê-la a se entregar a ele analisando o Cântico dos cânticos e o “crescei o multiplicai-vos”. Numa outra oportunidade, estávamos numa praia do Guarujá, conversando com duas moças que ali conhecemos, quando chegou um rapaz com pose de valente, perguntando-nos se estávamos incomodando as meninas, que provavelmente eram de seu círculo afetivo. Doc olhou ferozmente para o garotão, apontou-lhe dedo e soltou o vozeirão: “Aí, mano, toma cuidado, que eu sou inguinorante, tá ligado?!” O intrépido mancebo esbugalhou os olhos, pediu desculpas e deu no pé.

Nunca tendo tido a experiência um namoro, Doc mantinha uma vida afetiva que era uma interminável sucessão de brevíssimos casos com mulheres que “caçava” no metrô, no parque Ibirapuera, em clubes de provectas viúvas ou em “casas de massagem”. Contava sempre que sua maior fantasia sexual – magnífica experiência que o realizaria plenamente – seria estar debaixo de uma mulher de trezentos quilos, com celulites de oito centímetros e banhas entornando para os lados. Essa bem amada deveria aplicar-lhe sonoras bofetadas enquanto humilhava-o, gritando: “Você não é de nada!!! Você não é de nada!!!”

As depressões e agitações psicológicas de Doc são responsáveis por algumas de suas melhores histórias. Certa feita, profundamente deprimido e vítima de grande agitação interior, ele caminhava sozinho e sem rumo pelo perigoso centro de São Paulo, às 3h00 da madrugada. Só encontrou uma forma de lidar com seu drama: pegou um telefone público e ligou para um número qualquer. Do outro lado, o aparelho tocou doze vezes sem ser atendido. Até desligar. Doc não se deu por vencido. Ligou de novo para o mesmo número. Finalmente, após mais uns seis toques, alguém atendeu a chamada com voz sonolenta:

- Alô...

E Doc gritou a plenos pulmões: “Vá se foder, seu filho de uma puta!!!”

Feito isso, passaram por completo sua agitação interior e sua depressão.

De outra feita, caminhávamos pelo campus da universidade, e Doc sentia sua cíclica agitação interior de fundo um tanto neurótico. Por isso buscava um meio de dar vazão a sua aflição. Até que viu ao longe um grande tronco de árvore caído. Extremamente forte, Doc correu até lá, levantou o tronco no ar, correu com ele até uma elevação e, gritando a plenos pulmões, arremessou-o a uns quatro ou cinco metros de distância. O baque fez com que um grupo de cachorros vadios que ficava nas imediações saísse em disparada, em pânico. E Doc respirou fundo e reencontrou a paz interior.

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Buster Keaton em Nossa hospitalidade (1923)
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Por falar em cachorro, vivia pelo campus um bom número de vira-latas, em geral tratados com simpatia pela comunidade universitária. O líder desses animais era um grandalhão a quem todos os outros cães prestavam verdadeira vassalagem. Chamava-se Adão e era tão velho que se dizia ter sido ele que surgiu no mundo quando Deus pronunciou o “Faça-se o cachorro!”. Num final de tarde, Adão latia alto e forte. Seus súditos se recolhiam respeitosamente para um canto. Até que Doc, com seu vozeirão, começou a latir na direção do cachorro. Surpreso, o animal passou a latir mais alto e agressivamente, caminhando, por sua vez, na direção do humano. Este não se fez de rogado: também passou a latir mais alto e a ir no rumo de Adão. Todo mundo que passava pelo local parava para contemplar o original duelo, de tal modo que em pouco tempo formou-se uma pequena multidão. A contenda durou uns dois minutos. Resultado: após os litigantes se aproximarem latindo até mais ou menos um metro de distância, Adão, vergonhosamente batido em seu próprio campo de atuação, colocou o rabo entre as pernas, abaixou a cabeça e saiu de fininho, indo juntar-se aos de sua espécie. Os humanos espectadores, por sua vez, rebentaram em gargalhadas e aplausos para o seu brioso representante.

Esses mesmos cachorros costumavam dormir espalhados diante da portaria do prédio dos estudantes. De manhã, quando saíamos para nossas atividades, lá estavam eles. Até que Doc implicou com aquilo e resolveu acabar com a folga dos bichos. Pé ante pé, ele se colocou entre o grupo. De repente disparou a dar altos, agressivos e assustadores latidos de cachorrão bravo. O pânico foi tamanho entre a cachorrada que um deles, desorientado, se viu cercado num beco e tentou até subir pela parede. Desnecessário dizer que nunca mais voltaram a dormir na entrada do edifício. Mas, apesar de episódios como esse, nosso amigo era muito popular entre os cães, que o respeitavam e o adoravam.

Muitas vezes tive de espetar o dedo na cara de Doc e mandá-lo para os piores lugares, quando jogávamos futebol. É que, tendo pouca habilidade e sendo lento e pesadão, ele, que jogava na defesa, acreditava ser um verdadeiro Domingos da Guia, tendo a irritante mania de tentar driblar os atacantes adversários. Quantas vezes ele perdeu a bola e tomamos gol! Quantos pênaltis tivemos de cometer após suas trapalhadas.

Doc tinha obsessão pelos mistérios da natureza e pela figura divina. Um dia, após dar um golpe de caratê numa árvore, refletiu que “a natureza é um manto inconsútil”. Grande talento para as ciências exatas e a computação, Doc uma vez apareceu dizendo que estava desenvolvendo um modelo matemático que provaria a existência de Deus. Após uns cinco meses, encontrando uma falha no modelo, assumiu de vez o agnosticismo. Anos depois, conversando com um professor de Física, propôs-lhe que o orientasse num projeto de pesquisa que visava descobrir o moto-contínuo. O mestre arregalou os olhos, esquivou-se e saiu, sorrateiro...

O tempo correu. Terminados os meus estudos, tive de sair de São Paulo. Andei rodando um pedaço deste mundo a trabalho, sempre meio desenraizado. Doc foi para o Rio de Janeiro, trabalhar como engenheiro naval na Petrobras, onde parece estar bem. Lembrei-me dele há alguns dias, após ter de conviver com um grupo de pessoas prosaicas cujas idéias e cuja conversação me provocaram um tédio arrasador. Dele me lembro quando às vezes fico saturado da cultura livresca. Nesta época árida em que vivemos, seres como ele, macunaímicos e arlequinais, para lembrar dois termos caros a outro paulistano ilustre, são um oásis de alegria e humanidade em nossa convivência. Como esse mundo seria insuportável sem os extravagantes, os neuróticos, os mal-comportados, os originais!

13 comentários:

Anônimo disse...

Que figuraça, Adriano. É interessante como, escrevendo o que vc escreve, tem amigos como esse. O tempo de faculdade é realmente fantástico.

Anônimo disse...

O Doc está morando no Rio de Janeiro agora. Se possível me dê o telefone ou o e-mail dele. Quero ter também o privilégio de ser amigo desse cara. As histórias dele são demais.

Anônimo disse...

Lendo as histórias do seu amigo, Doc, lembrei do Forrest Gump, Adriano.

Anônimo disse...

Você fala mal do João Paulo II e enche um depravado como esse de elogios. Esse mundo está de pernas para o ar. Onde você pretende chegar?

Anônimo disse...

FANTÁSTICA A FORMA DE DOC COMBATER A ANGÚSTIA. GRANDE IDÉIA: NESTE NOITE MESMO VOU LIGAR PARA ALGUÉM NO MEIO DA NOITE E DIZER ESSE MANTRA: "VAI TOMAR NO SEU CU, FILHOH DA PUTA!" QUEM DIZ ISSO, DORME TRANQÜILO E TEM BONS SONHOS...

Anônimo disse...

Adoro seus textos, cuja linguagem é direta, colorida e ágil, sem superficialidade, vocabulário banal e raciocínio fácil. Neste você surpreendeu. Em vez de um artigo de análise de problema atual, tratou do anticonvencionalismo contando as histórias dessa figura impagável. Visito seu blog toda semana. Sempre há, nele, textos que se lêem com prazer. Também gosto de suas máximas, que são sempre espirituosas, aguilhoando os bem-pensantes.

Anônimo disse...

Esse cara é um promísco, um vulgar e um doido varrido. E vc é mais ainda do que ele por admirar um tipo desses.

Anônimo disse...

Impagável o duelo de Doc com o cachorro Adão. Quase morri de rir. Vou enviar esse texto a meus amigos por e-mail.

Anônimo disse...

Que contraste este texto com os outros que vc publicou aqui, Adriano. Não há como não rir e simpatizar com uma figura carimbada como esse seu amigo Doc. A fantasia sexual dele é realmente muito bizarra.

Anônimo disse...

Não gostei dos palavr~oes que vc reproduziu aqui. Seu blog tem sido de alto nível discutindo questões muito importantes. Uma pessoa como vc não pode se prestar a usar palavas de baixo calão em seus artigos. Além disso, esse Doc é um maluco.

Anônimo disse...

Esse cara é demais Que fantasia grotesca, que duelo engraçado com o cachorro, que formas esquisitas de combater a depressaão. E que talento.Esse Doc é ao mesmo tempo um louco e um gênio...

Anônimo disse...

Esse Doc é um maluco e um alienado e vc é ainda mais do que ele.

Anônimo disse...

Esse Doc é a negação do espírito burguês, da frescura moderninha, e do intelectualoidismo. Como esse país anda precisando de gente como ele!