sexta-feira, 27 de abril de 2007

Sabichinho

Pedante é um sujeito que sabe sempre fora de hora.

Santo de mídia

Adriano de Paula Rabelo

Nestes dias que precedem a chegada do papa Bento XVI ao Brasil, noticia-se que corre, no Vaticano, um apressado processo de beatificação do papa anterior, João Paulo II, morto no ano passado. Sendo assim, os cardeais, com o aval do atual pontífice, andam saltando etapas para que seja outorgado o status de santo ao polonês Karol Vojtila o mais brevemente possível.

No noticiário internacional da mídia brasileira, macaqueado das grandes agências européias e norte-americanas, João Paulo II é incensado, referido invariavelmente como alguém que de fato tivesse vivido uma existência digna da santidade. Nada mais absurdo.

Durante os quase trinta anos do papado anterior, diversas seitas evangélicas, espíritas e afro-brasileiras aumentaram significativamente seus rebanhos às expensas da igreja católica. Ampliou-se enormemente o número de católicos que crêem e rezam, mas que não mais freqüentam igrejas nem dão ouvidos às arengas de padres e ministros da igreja. O Vaticano nunca esteve tão divorciado dos gravíssimos problemas que afetam o povo da América Latina, a região com maior contingente de católicos no mundo. Isso aconteceu em grande medida por causa da arrogância do papa Vojtila e dos seus posicionamentos anacrônicos em relação a temas como aborto, eutanásia, divórcio, pílulas anticoncepcionais e homossexualismo, além de sua perspectiva reacionária quanto às políticas sociais. Exibindo um pensamento e uma ação notoriamente retrógrados, o futuro santo só alargou o distanciamento entre as diretrizes do centro do catolicismo e a realidade contemporânea.

Politicamente, João Paulo II sempre foi conivente e omisso em relação às agressões dos Estados Unidos às nações mais fracas do ponto de vista militar, condenou as políticas antiimperialistas e os movimentos sociais na América Latina, perseguiu e puniu religiosos ligados à Teologia da Libertação, nada pronunciou sobre o escárnio com que os grandes órgãos da mídia internacional vêm tratando os muçulmanos nas últimas décadas.

Com essa vetusta linha de pensamento e ação, o papa Vojtila naturalmente caiu nas graças da poderosa indústria da notícia sediada nos Estados Unidos e na Europa. No noticiário de guardiães do imperialismo e arautos do etnocentrismo como CNN, New York Times, Time, BBC, Reuters, France Press, João Paulo II passou a ser incensado como “grande homem”, “mensageiro divino”, “viajante da fé”. Obviamente a imprensa colonizada da periferia do capitalismo só fez repetir o coro das agências americanas e européias. Afinal isso é o que consideram ser moderno e globalizado.



Um santo sem obra

Curioso como a autoridade máxima do catolicismo, no contexto da pasteurização da notícia, tornou-se uma figura acima de qualquer crítica inclusive para as agências de países predominantemente protestantes. Curioso como o noticiário gerado nas capitais mundiais da modernidade reverenciavam uma figura cujas concepções políticas e culturais situavam-se em épocas anteriores à emancipação da mulher, ao reconhecimento dos direitos dos trabalhadores e à Declaração Universal dos Direitos do Homem. Sendo João Paulo II uma autoridade de enorme influência no chamado Terceiro Mundo, alguém que sempre viu os países pobres como combustível da economia dos centros hegemônicos, alguém que tinha horror aos movimentos sociais e emancipatórios, realmente ele só poderia receber louvores por parte das visões de mundo imperialistas e etnocêntricas, no plano internacional, e dos legitimadores do status quo nas sociedades subdesenvolvidas, no plano nacional.

Onde foram parar as propostas de um João XXIII no concílio Vaticano II, que, através da encíclica Pacem in terris, de 1963, enfatizou o compromisso da igreja católica com os direitos humanos, assumindo sua missão social e modernizando a liturgia para poder sintonizar-se com o nosso tempo e com um mundo mais justo e seguro? Já na década seguinte, a ala medievalista e reacionária voltaria a tomar conta do poder para não mais deixá-lo. Não por acaso aí vem Bento XVI, o conservador que sucedeu João Paulo II, justamente num momento em que se discutem, no âmbito da alta política nacional, temas como pesquisa com células-tronco e aborto. O santo padre já falou inclusive no retorno das missas em latim.

Antigamente os santos se qualificavam para essa condição através de obras e condutas exemplares, seja pela imitação de Cristo, seja pelo combate às iniqüidades, seja pela criação intelectual influente. Eram militantes engajados como São Paulo, intelectuais ilustres como Santo Agostinho, teólogos eminentes como São Tomás de Aquino, rebeldes como São Sebastião, criadores de instituições influentes como São Bento ou Santo Inácio, grandes poetas místicos como Santa Teresa de Ávila ou São João da Cruz, heróis como São Jorge, alguém que se posicionava ao lado dos humilhados e ofendidos como São Francisco de Assis. Hoje, para se tornar santo, aboliu-se a obra, aboliram-se as virtudes verdadeiramente cristãs. Basta servir à superestrutura dominante e nadar de braçadas nas águas dessa mídia sórdida que vem emburrecendo o mundo.

Em breve João Paulo II será sagrado padroeiro da CNN ou protetor da BBC, receberá a mais fiel devoção da Reuters e do New York Times... O catolicismo levou quinhentos anos para ir de São Francisco a João Paulo II. Veja bem: de São Francisco a João Paulo II!

sexta-feira, 20 de abril de 2007

Anna Starlight

O travesti é um bípede plume.

Um panteão feminino

Adriano de Paula Rabelo


Causou certo rebuliço minha crônica de algumas semanas atrás em que tratei da atual voga de um bizarro padrão de beleza raquítica, fútil e convencional. Na ocasião contrapus à massa de mulheres que se submetem a esse leito de Procusto algumas figuras de mulheres famosas cuja beleza subverte qualquer sistema que pretenda normatizar o belo. Como é muito mais agradável e proveitoso tratar destas últimas, resolvi elaborar um pequeno conjunto de perfis de mulheres de diversas épocas e lugares que, a meu ver, realizam com plenitude aquilo a que se pode denominar como beleza feminina. Deixei de fora as mulheres ficcionais, que fazem parte de obras literárias, para me concentrar em figuras que existiram no plano da história. Apesar disso, não se pode negar que muito de ficcional se construiu em torno de suas personas públicas, o que só valoriza as suas qualidades de beleza. São tipos muito distintos entre si, seja fisicamente, seja psicologicamente, pertencendo a diferentes universos de cultura. Representando da Antiguidade à época contemporânea, elas compõem, acima de tudo, um panteão de profunda beleza humana:

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Rainha Nefertiti (c. 1380 - 1345 a.C.)

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Seu nome significa “a Bela chegou”. Casou-se com o faraó Akhenaton. Teve grande importância nos ritos religiosos do antigo Egito, sendo oficiante do culto ao deus Aton. Sua beleza foge aos padrões de sua cultura na época, marcando-se pela face alongada e os lábios carnudos e sensuais. Tais características são tão acentuadas que alguns egiptólogos especulam que ela sofreria da síndrome de Marfan. Em 1912 foi encontrado um busto de Nefertiti em Amarna, por uma equipe de arqueólogos alemães. Sua beleza impressionou tanto que gerou, entre as mulheres européias dos anos 30, a moda de tentar imitar-lhe os traços através de recursos de maquiagem.

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Cleópatra (70 ou 69 - 30 a.C.)

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Rainha do Egito durante a invasão dos gregos, nasceu em Alexandria, sendo originária de uma família de origem macedônica. Possuía grande inteligência, dominando oito idiomas e tendo escrito livros sobre cosméticos, pesos e medidas e magia. Tinha grande conhecimento da natureza humana e dos assuntos de Estado. Por isso conseguiu manter-se no poder por longo tempo numa época em que os governantes eram freqüentemente assassinados pelas facções que os sucediam no poder.

Desde o início da ascensão de Roma, Cleópatra percebeu que aquele império dominaria o Mediterrâneo. Durante um conflito com seu irmão, Ptolomeu XIII, com quem dividia o poder, Cleópatra recebeu Júlio César, imperador romano que chegou ao Egito em 48 ou 49 a.C., para lhe dar um presente. Tal presente consistia num tapete, que, ao ser desenrolado, mostrou que a própria rainha estava em seu interior. Argumentando que ficara encantada ao ouvir as histórias de amor de César, Cleópatra lhe disse que havia ficado desejosa de o conhecer. Após esse episódio, tornou-se amante do poderoso imperador romano, ajudando-o no estabelecimento o poder romano no Egito. Dois ou três anos depois, transfere-se para Roma a convite de César, tendo elaborado um plano de hegemonia romana no Mediterrâneo. Engravidou de Júlio César e com ele teve um filho, Ptolomeu XV Caesar. Com o assassinato do imperador, no entanto, Cleópatra retorna ao Egito, onde seu irmão, que ali reinava sozinho morre em circunstâncias misteriosas. Possivelmente, Cleópatra mandara envenená-lo.

Em 42 a.C., Marco Antônio, um dos triúnviros que governava Roma após o vazio de poder que sucedeu a morte de César, convocou-a para que se encontrasse com ele, a fim de interrogá-la sobre sua lealdade. A rainha egípcia chegou com grande pompa e circunstância. Marco Antônio se apaixonou no ato, e os dois passaram vários meses juntos em Alexandria. Desse relacionamento, Cleópatra teve um casal de gêmeos. O triúnviro parte para Roma, mas acaba por retornar a Alexandria quatro anos depois, retomando sua relação com Cleópatra e passando a viver naquela cidade, onde possivelmente se casaram segundo os rituais egípcios. Os dois tiveram mais um filho, Ptolomeu Filadelfo.

Em 31 a.C., o Senado romano declarou guerra ao Egito. Após um ano de lutas, Otávio Augusto acabou por derrotar o exército egípcio. Com isso, Marco Antônio e Cleópatra cometeram suicídio, ela deixando-se picar por uma serpente venenosa. O norte da África, então, tornou-se uma província romana sob o governo de Otávio.

Os relatos antigos descrevem Cleópatra como uma mulher que não se destacava muito pela beleza de suas feições. Mas o que é uma trajetória como essa, uma força humana, uma sabedoria como essa senão a própria beleza?

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Beatriz Portinari (1266-1290)

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A justificar a presença de Beatriz Portinari neste panteão, está apenas uma realização, completamente involuntária: ter transformado Dante Alighieri no poeta supremo da Divina Comédia. O grande florentino conta em seu livro Vida nova que se tornou poeta a partir de seu encontro com Beatriz, que se realizou como verdadeira conversão.

O Poeta a teria visto pessoalmente apenas duas vezes. Uma quando ele tinha nove anos e ela oito, tendo sido levado à casa dos Portinari por seu pai, por ocasião de uma festa. Dante se apaixonou de imediato, vendo nela atributos divinos e qualidades de nobreza absoluta. Mais tarde, aos dezoito anos, Dante voltaria a vê-la uma segunda vez, num encontro casual numa rua de Florença. Ela caminhava vestida de branco, acompanhada por duas mulheres mais velhas. Beatriz teria se virado para o Poeta e saudado-o, trocando com ele umas poucas palavras. Tal foi a felicidade de Dante que ele correu para casa a fim de repassar na memória o encontro com a amada. Nessa ocasião, ao adormecer, sonhou com a aparição de uma figura de grande poder que se apresentou como sendo o seu senhor. Nos braços do estranho ser, estava Beatriz adormecida, coberta por um tecido vermelho. A potestade acordou Beatriz e fez com que ela comesse o coração de Dante, que ardia em chamas.

Quando se deu este segundo encontro com a musa inacessível, o Poeta já era um homem casado e com filhos (teria quatro ao longo da vida). Pouco tempo depois, Beatriz também se casaria com um banqueiro e, alguns anos mais tarde, morreria com apenas 24 anos. Apesar disso, Dante cultivou por ela, durante toda a sua tumultuosa vida, um amor cortês de caráter intelectual e idealizado. Com grande dedicação e lealdade, imbuído de profundo marianismo, o Poeta concebia esse amor como uma verdadeira penitência, um processo de espiritualização. Sua fidelidade a Beatriz só foi quebrada por ocasião da morte da amada – durante pouco tempo –, quando ele, arrasado, entregou-se a uma série de mulheres fáceis. Mas logo se arrependeu “dolorosamente do desejo pelo qual se deixara possuir tão vilmente por uns dias, contra a constância da razão”. E retomou o culto de sua Beatriz, que para Dante era a Pureza, a Salvação, alguém que lhe inspirava bondade, fazendo com que ele superasse as más intenções e se tornasse uma pessoa melhor.

Mais tarde, na Divina Comédia, Dante colocará Beatriz no Paraíso, permitindo-se reencontrá-la somente após passar por um processo de penitência – sua passagem pelo Inferno e pelo Purgatório – que lhe permitiu purificar-se das baixezas do mundo para novamente se colocar aos pés daquela que para ele foi a encarnação da virtude cristã. No Paraíso, conduzido por Beatriz, ele pôde sentir a emanação e a glória do poder divino.

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Heloísa (1101-1162)

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Demonstrando desde cedo grande talento para a criação intelectual, Heloísa, originária do interior da França, foi enviada a Paris, onde permaneceu por algum tempo sob a tutela de um tio. Aos 18 anos, por volta de 1119, começou a tomar aulas com Pedro Abelardo, um dos filósofos mais em evidência naquele momento. A convivência fez com que os dois se apaixonassem, e Heloísa viesse a engravidar meses depois. Eles se casam secretamente e tem o filho, que pouco depois ficará sob os cuidados de uma irmã do filósofo. No entanto, Abelardo é castrado a mando de Fulbert, o tio de Heloísa, que ficara furioso com a sedução da sobrinha e decidiu se vingar.

Após a mutilação, Heloísa torna-se freira e Abelardo monge, atuando em instituições e localidades distintas. Os dois voltarão a se encontrar somente dez anos depois, quando, após ela ter perdido o convento em que atuava numa disputa de terras, Abelardo lhe oferece o Paracleto, um oratório que ele havia fundado na região de Champagne alguns anos antes. Transformado numa abadia beneditina, Heloísa se tornou a abadessa.

Em 1132, Abelardo escreveu uma carta a um amigo, intitulada “História das minhas calamidades”, em que reflete sobre os enormes sofrimentos que vinham marcando sua vida. Ao ler a missiva, Heloísa inicia uma correspondência com o filósofo, tratando de questões religiosas, bem como de seu amor e de assuntos relacionados às desventuras de suas vidas.

Uma década depois, os ensinamentos de Abelardo são condenados, e ele é chamado a Roma para se defender. Nessa ocasião, ele adoece, vindo a morrer em 1142. Heloísa ainda sobreviveu-lhe por mais vinte anos, dedicando-se ao serviço da Igreja. A tragédia os separou, mas seu amor e admiração perduraram durante o resto de suas vidas. Após vários e burocráticos traslados, seus corpos hoje repousam juntos num mesmo mausoléu no cemitério Père Lachaise, em Paris.

Tendo amado um grande homem e vivido com ele, durante grande parte de sua vida, uma história de amor sem par, Heloísa entrou para a história por seu próprio valor, pela riqueza humana que lhe permitiu sobrepujar a barbárie e as limitações da existência.

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Lou Salomé (1861-1937)

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Nascida em São Petersburgo, na Rússia, Louise Salomé revelou desde cedo grande talento, sede de conhecimento e ceticismo em relação às convenções sociais e religiosas de seu tempo. Aos 21 anos, partiu para a Europa ocidental, onde conviveu com vários dos maiores intelectuais do final do século XIX e das primeiras décadas do século XX, entre eles Nietzsche, Paul Rée, Peter Gast, Andreas, Bergson, Freud, Jung, Rilke e Sartre, causando sempre forte impressão em todos eles. Nietzsche, por exemplo, apaixonou-se por ela e lhe propôs casamento em duas ocasiões, sendo rejeitado.

Lou Salomé viveu alguns anos com Paul Rée e casou-se mais tarde com o lingüista Friedrich Carl Andreas. Tornou amante de Rilke e orientadora de sua trajetória como poeta durante os quinze anos em que se relacionaram.

Sua personalidade marcava-se pelo anticonvencionalismo e a liberdade intelectual e moral. Em seus livros, discutia freqüentemente as relações humanas, o amor e o erotismo, a condição feminina. Esse campo de interesses fez com que ela se aproximasse de Freud. No entanto, ela divergia das teorias freudianas sobre o narcisismo e a feminilidade. Encorajada pelo criador da psicanálise, Lou Salomé chegou a praticá-la na Alemanha por vários anos.

Uma passagem de um de seus livros dá bem a idéia de sua personalidade e do quanto ela estava à frente de seu tempo: “Ouse, ouse... ouse tudo! Não tenha necessidade de nada! Não tente adequar sua vida a modelos, nem queira você mesmo ser um modelo para ninguém. Acredite: a vida lhe dará poucos presentes. Se você quer uma vida, aprenda... a roubá-la! Ouse, ouse tudo! Seja na vida o que você é, aconteça o que acontecer. Não defenda nenhum princípio, mas algo de bem mais maravilhoso: algo que está em nós e que queima como o fogo da vida!”

Uma mulher que encarava a vida com tamanha paixão, coragem e autenticidade, tendo fascinado gênios como Nietzsche, Freud e Rilke, está muito à frente inclusive de um tempo falsas liberdades como o nosso.

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Mata Hari (1876-1917)

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Nascida na Holanda, filha de um fabricante de chapéus de origem javanesa e de mãe holandesa, seu verdadeiro nome era Margaretha Geertruida Zelle. Aos 18 anos se casou com um capitão do exército holandês, introduzindo-se na alta sociedade de seu país e chamando a atenção de todos por sua beleza de traços indianos. Pouco tempo depois, o capitão foi convocado para servir em Java, território colonial da Holanda. Lá tiveram um casal de filhos, mas o casamento se degradou rapidamente. Para piorar, o filho primogênito morreu aos três anos, envenenado por uma serviçal da casa. MacLeod, seu marido, tratava-a com tal brutalidade que seus superiores o mandaram de volta à Holanda, onde logo o casal se separou, tendo o militar abandonado-a e levado a filha pequena. Sem recursos, Mata Hari teve de ir viver por algum tempo em casas de parentes. Até que em 1903 ela se mudou para Paris, iniciando, dois anos depois, uma carreira como dançarina profissional, aproveitando sua aparência e sua experiência no Oriente para criar coreografias que remetiam a um mundo de exotismo e sensualidade. Por essa ocasião adotou o nome de Mata Hari, que, segundo ela, significava “olho do dia” em língua malaia.

Alta, de largos quadris, cabelos muito pretos, olhos profundos e melancólicos, pele aveludada, seios fartos e mãos sedutoras, a dançarina executava seus números em roupas transparentes ou mesmo nua. Em pouco tempo, tornou-se um grande sucesso em Paris e outros grandes centros europeus, passando a freqüentar a alta sociedade e o círculo do poder. No mesmo ano em que se iniciou suas apresentações na França, um industrial abandonou mulher e filhos para cobri-la de presentes caros. Algum tempo depois, ele se arruinaria financeiramente e seria preso por insolvência.

Ao viajar à Alemanha com seus espetáculos, tornou-se amiga do príncipe herdeiro do trono e do chefe de polícia de Berlim. Ao retornar à França, os teatros a disputavam, oferecendo-lhe contratos bastante vantajosos. Mata Hari continuava a manter estreitas relações com o círculo de poder no país, especialmente entre os militares, entre os quais teve numerosos amantes.

Nesse momento, a Europa aproximava-se da Primeira Guerra Mundial, que colocaria em lados opostos a França e a Alemanha, países entre os quais ela tinha trânsito freqüente e que, com o desenrolar do conflito, tentaram aliciá-la para que atuasse como espiã, oferecendo-lhe somas milionárias, já que ela se relacionava estreitamente com figuras poderosas dos dois lados.

Até hoje não se sabe se Mata Hari serviu como espiã em favor de um lado ou de outro, se fazia jogo duplo ou mesmo se se recusou a prestar-se ao papel de fornecer informações de guerra estratégicas para um lado ou outro. No final de 1916, o serviço de inteligência britânico, aliado da França, interceptou uma mensagem do principal quartel-general alemão dizendo que determinado agente “H. 21” vinha lhes prestando excelentes serviços de espionagem. A informação foi transmitida aos franceses, que identificaram tal agente como sendo Mata Hari. Quando ela retornou a Paris, já no início de 1917, foi presa, acusada e processada. Durante as audiências, ela negou com veemência ter atuado como espiã a favor dos alemães. Mas ao final do processo, apesar de os acusadores não apresentarem nenhuma evidência concreta de seu envolvimento, ela foi considerada culpada pela morte de milhares de soldados aliados e sentenciada à morte por fuzilamento. Na manhã de 15 de outubro de 1917, ela foi executada por um pelotão na cidade de Vincennes. Circulam várias versões sobre seus momentos finais. Uma delas diz que, logo antes da detonação dos tiros que a mataram, Mata Hari teria jogado um beijo para seus executores. Outra diz que ela teria olhado para seu advogado e dito: “Merci, monsieur”. Outra ainda diz que a dançarina teria escancarado o roupão de condenada que lhe cobria o corpo, exibindo-se nua antes de receber a saraivada de balas.

Desde sua execução Mata Hari tornou-se uma figura muito popular, transformando-se no paradigma da mulher fatal, que tão longa carreira tem feito na literatura, no cinema, na música popular, nas telenovelas e no faits divers dos jornais diários. A mulher-devoradora-de-homens tem gerado enorme fascínio na arte e na cultura ocidentais.

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Frida Kahlo (1907-1954)

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As palavras de sempre me lembro quando se fala em Frida Kahlo são “força”, “valor”, “dignidade”, “amor”, “intensidade” e, principalmente, “beleza”. De todas as mulheres aqui referenciadas, ela é, para mim, a mais bela.

Nascida na periferia da Cidade do México, filha de um fotógrafo alemão com uma nativa da cidade de Oaxaca, aos seis anos a futura pintora contraiu uma poliomielite que lhe deixaria como seqüela uma ligeira deformação no pé direito, que ficou mais curto e com a musculatura atrofiada. Para disfarçar o problema, Frida passou a usar saias longas e coloridas, tal como as indígenas mexicanas. Quando ficou famosa, muitas mulheres passaram a imitá-la, acreditando que ela estava lançando moda.

Aos quinze anos ingressa na escola preparatória para a faculdade de Medicina. Na ocasião conhece Diego Rivera, já um pintor famoso, que fora contratado para pintar um mural naquele estabelecimento, sendo tomada de grande admiração por ele.

Aos dezoito anos, um ônibus em que viajava chocou-se com um bonde. O acidente quase lhe tirou a vida. Frida foi trespassada por um corrimão de metal na altura da pélvis, rompendo a coluna vertebral em três lugares na região lombar. Além disso, fraturou a clavícula e duas costelas. A perna direita sofreu onze fratura e o pé foi esmagado. Obviamente esse acontecimento lhe deixou profundas marcas físicas e psicológicas. O sonho de ser médica foi destruído. Para piorar, ela foi informada de que jamais poderia ter filhos através de parto normal, sendo aconselhada a não engravidar.

Frida teve de ficar coberta por gesso durante sete meses, tendo apenas as mãos livres. Assim, para passar o tempo, começou a pintar, tendo logo se revelado uma artista excepcional.

Em 1928, filiou-se ao partido comunista, ocasião em que reencontrou Diego Rivera, que já vinha de dois casamentos anteriores. Os dois se apaixonam e se casam no ano seguinte. Por causa de grande diferença de corpos entre os dois, os pais de Frida brincavam dizendo que aquele era o casamento de um elefante com uma pomba. Por duas ocasiões, em 1930 e em 1932, Frida sofre abortos naturais, por causa de seus problemas pélvicos. Em 1934, uma nova gravidez tem de ser interrompida por causa de “infantilismo dos ovários”. Por essa época, aumentam as dores em sua perna direita, nunca completamente recuperada dos traumas sofridos no acidente.

Na primeira metade dos anos 30 casal vive temporadas entre os Estados Unidos e o México. Diego, homem de libido desenfreada, tem várias amantes. Ao descobrir que o marido havia tomado por amante a própria irmã de Frida, Cristina, a pintora decide separar-se de Diego. No entanto, apesar de tanto Frida como Diego terem tido vários outros relacionamentos, eles continuaram se amando pelo resto de suas vidas.

Por essa época, Frida realiza uma cirurgia no pé direito, amputando vários dedos. Sua pintura torna-se indissociável de sua vida, realizando-se como uma intensa confissão pessoal, um dilacerante mostruário de insatisfações e sofrimentos.

A despeito dos problemas de saúde que a atormentavam, Frida envolve-se com a política de seu país e se relaciona com intelectuais europeus e americanos como André Breton, Leon Trotski e Nickolas Muray. Em 1938, expõe em Nova York e, no ano seguinte, em Paris, obtendo reconhecimento de público e de crítica.

Em 1940 volta a viver com Rivera. Atravessa toda a década de 40 entre os sofrimentos provocados pelas dores na coluna e na perna direita, a militância no partido comunista e a produção de quadros impressionantes pela força expressiva, enfrentando a vida com generosidade, sensibilidade e garra.

Os anos 50 seriam duros para a grande artista. É operada sete vezes na coluna vertebral e passa nove meses no hospital, passando a andar de cadeira de rodas e a ter de tomar continuamente grande quantidade de remédios contra a dor. Em 1953, bastante doente, comparece de maca à primeira exposição individual de seus trabalhos, na Cidade do México. Nesse mesmo ano, tem de amputar a perna direita até a altura do joelho. Esgotada, Frida deixa de pintar por vários meses, vindo a morrer de uma infecção pulmonar em 1954.

Bela sob todos os aspectos, Frida Kahlo encontrou na arte uma forma vencer o sofrimento e o peso da vida. Morena, de grossas sobrancelhas, baixa estatura, personalidade forte, feminina, genial, única. Sua obra compõe-se em grande parte por auto-retratos em que reelabora sua luta e sua potência humana. Indissociáveis, sua vida e sua obra nos comovem e nos modificam profundamente. Ave, Frida.

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Olga Benario (1908-1942)

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No dia anterior a sua execução pelos nazistas numa câmara de gás, em sua última carta, Olga Benario escreveu o seguinte: “Lutei pelo justo, pelo bom e pelo melhor do mundo. Prometo-te agora, ao despedir-me, que até o último instante não terão porque se envergonhar de mim. Quero que me entendam bem: preparar-me para a morte não significa que me renda, mas sim saber fazer-lhe frente quando ela chegue. Mas, no entanto, podem ainda acontecer tantas coisas... Até o último momento manter-me-ei firme e com vontade de viver. Agora vou dormir para ser mais forte amanhã. Beijos, pela última vez.”

Esse era o espírito de uma militante que, de origem pequeno-burguesa, aos 15 anos entrou para o movimento político de esquerda, ingressando no Partido Comunista alemão e participando de manifestações de rua. Cinco anos depois, preparou e executou uma espetacular operação de resgate do militante Otto Braun, seu namorado na época, da prisão de Moabit. Após essa ação, os dois são obrigados a fugir da Alemanha, refugiando-se na União Soviética.

Célebre entre a militância revolucionária por sua ousadia em Moabit, possuindo excelente formação militar e técnica, em 1934 Olga recebeu a missão de acompanhar e realizar a segurança pessoal de Luis Carlos Prestes, quando o movimento comunista internacional planejou a realização de uma revolução no Brasil, a ser liderada pelo ex-tenente.

Assumindo identidades e nacionalidades falsas, eles transferem-se para o Rio de Janeiro. Durante a viagem, eles se apaixonam e iniciam um romance, que prosseguirá durante sua estadia no Brasil. Por essa época, quando tudo se encaminhava para o desencadear da Segunda Guerra Mundial, as ideologias e a ação política se marcavam por grande radicalização.

Tudo estava preparado para a tomada do poder pelo movimento revolucionário no final de 1935, quando, devido à espionagem do serviço policial do governo Vargas e à delação dos preparativos por uma militante presa e torturada, a ação, que já havia sido iniciada em Natal, no Recife e no Rio de Janeiro, foi sufocada. Vários militantes são presos e barbaramente torturados. Prestes e Olga mergulham ainda mais na clandestinidade, mas logo são denunciados, caindo em mãos de policiais fascistas.

Apesar de grávida de um cidadão brasileiro e casada com ele, Olga foi entregue pelo governo de Getúlio Vargas aos chacais do governo nazista, que há muito esperavam a oportunidade de colocar as mãos naquela que, não bastasse ser comunista e judia, havia praticado tantas ousadias na Alemanha dos anos 20. Nas garras dos homens de Hitler, Olga percorreu uma prisão (onde teve a filha que esperava, entregue à mãe de Prestes) e três campos de concentração até ser assassinada em fevereiro de 1942.

Passados vários anos, nas mudanças dos ventos da política, Prestes foi libertado e subiu num palanque eleitoral em apoio a Vargas, o responsável pela entrega de sua mulher aos nazistas. Por esse ato, o Cavaleiro da Esperança só pode ser qualificado como um arrematado canalha.

Olga foi uma dessas personalidades que poderiam ser classificadas como santos modernos, pessoas inspiradas e inspiradoras que mantêm acesa a esperança de que a humanidade pode ser também generosidade, desprendimento, justiça, dignidade e nobreza. A seu lado repousam outros santos chamados Rosa Luxemburgo, Martin Luther King, Che Guevara, Gandhi... Não por acaso, todos assassinados pela mediocridade, a ganância, a rapinagem e o espírito burguês que tomaram conta deste mundo.

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Greta Garbo (1905-1990)

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O cinema norte-americano tem se marcado pela atuação atores e atrizes que se tornam referenciais de beleza em suas épocas. Curiosamente, as duas figuras aqui escolhidas como as mais representativas da beleza feminina no cinema hollywoodiano são suecas: Greta Garbo e Ingrid Bergman.

Nascida em Estocolmo, Greta Garbo iniciou sua carreira como atriz de teatro na Suécia, partindo para os Estados Unidos em 1925, onde iniciou-se no cinema mudo. A partir de 1930, foi um dos poucos artistas de sobreviver à nova era do cinema, quando foi introduzido o som dos diálogos dos personagens.

Sua carreira na sétima arte foi curta, durando até 1941, quando se retirou após atuar em grandes filmes no decorrer dos anos 1930, tais como Anna Christie, Romance, Mata Hari, Grande Hotel, Rainha Cristina, Camille, Anna Karenina e Ninotchka, interpretando com maestria mulheres glamorosas, sensuais e plenas de mistério. Sua carreira foi uma das mais fulgurantes de uma atriz no cinema americano. Quando abandonou os filmes, tinha apenas 36 anos, passando a viver uma vida reclusa em Nova York. Consta que sua reclusão decorria do fato de ser uma personalidade obsessiva e deprimida, além de ter cultivado por toda a vida uma grande vergonha da profissão de seu pai: limpador de latrinas.

Garbo viveu por algum tempo com o ator John Gilbert, que a pediu em casamento três vezes. Na terceira, ela aceitou, mas acabou por abandoná-lo no altar. A grande paixão de sua vida foi uma colega da escola de teatro com quem viveu um romance na juventude, a também atriz sueca Mimi Pollak. Por isso, ela jamais voltou a considerar a hipótese do casamento, lutando sempre com uma sexualidade mal resolvida.

Greta Garbo, que chegou a entrar para o livro Guinness de recordes mundiais como a mulher mais bela que já existiu, morreu em 1990, por causa de problemas renais e de uma pneumonia, após ter enfrentado o tratamento de um câncer de seio, sendo cremada e tendo suas cinzas retornado à Suécia.

Carlos Drummond de Andrade, que admirava o cinema da época áurea de Hollywood, escreveu sobre Garbo num poema de seu último livro:

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Todo o espaço é ocupado por Greta Garbo.

Na mínima tela dos olhos (...)

Agora estou sozinho com a memória

de que um dia, não importa em que sonho,

imaginei, maquinei, vesti, amei Greta Garbo.

Esse dia durou 15 anos.

E nada se passou além do sonho

diante do qual, em torno ao qual, silencioso

fatalizado,

fui apenas voyeur.

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Ingrid Bergman (1915-1982)

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Filha de pai sueco e mãe alemã, Ingrid Bergman também nasceu em Estocolmo. A mãe morreu quando ela tinha apenas três anos, e o pai, dez anos depois. Assim, Bergman foi criada em casas de tios. Aos dezessete anos, entrou para uma escola de arte dramática, logo começando sua carreira cinematográfica e tornando-se famosa em seu país.

Em 1937, com 21 anos, casou-se com um dentista, tendo com ele uma filha no ano seguinte. Em 39, ela transfere-se para os Estados Unidos, onde estrela Intermezzo, uma refilmagem de um filme sueco, fazendo grande sucesso. Diferentemente da quase totalidade das estrelas de Hollywood na época, Ingrid Bergman não mudou seu nome, era bastante alta para os padrões das mocinhas dos filmes e aparecia na tela com muito pouca ou sem maquiagem. Seu grande sucesso foi Casablanca, o clássico de Michael Curtiz, de 1942, que lhe proporcionou enorme popularidade.

Durante a Segunda Guerra Mundial, viajou algumas vezes à Europa, onde iniciou um relacionamento com o fotógrafo Robert Capa. Já no final dos anos 40, encontrou o diretor italiano Roberto Rossellini, cujos trabalhos admirava e com quem iria fazer o filme Stromboli. Os dois se apaixonam e Ingrid engravida de Rossellini. O romance e a gravidez causaram tremendo escândalo nos Estados Unidos, onde ficaram o primeiro marido e filha de Bergman. Rossellini, por sua vez, também abandonou a família. A atriz foi acusada publicamente de adúltera e de ser um mau exemplo para as mulheres americanas. Com isso, ela se estabeleceu por sete anos na Itália, passando a trabalhar na Europa. Só retornaria aos Estados Unidos após o final de seu casamento com Rossellini, em 1957, tendo tido três filhos com ele.

A partir do final dos anos 50, Bergman volta a estrelar com sucesso vários filmes hollywoodianos, trabalhando regularmente no teatro e, em algumas poucas ocasiões, na televisão. Em 1958, ela se casa pela terceira e última vez com o produtor Lars Schmidt, também sueco, permanecendo a seu lado até 1975. Ainda nos anos cinqüenta, Ingrid seria eleita a melhor atriz da história do cinema falado, tendo sua compatriota Greta Garbo sido escolhida como a melhor dos tempos do cinema mudo.

Ingrid Bergman morreu em Londres, em 1982, no dia de seu aniversário de 67 anos, após uma longa e penosa batalha contra um câncer de seio. Seu corpo foi cremado e, durante o funeral, na Suécia, um violinista executou “As time goes by”, tema musical de seu filme mais famoso.

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Billie Holiday (1915-1959)

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A vida de muitas cantoras de jazz na primeira metade do século XX foi marcada por sofrimentos e desilusões. A maior de todas elas teve uma vida em que a tragédia foi uma presença constante.

Quando Billie Holiday nasceu na cidade de Filadélfia, sua mãe tinha apenas treze anos, e as duas tiveram de se mudar da cidade para evitar o escândalo da mãe solteira. O pai, então com dezesseis anos, era um tocador de banjo em início de carreira que abandonou a família e partiu em viagem com uma banda de jazz. Três anos depois, no entanto, ele aceitou se casar, mas o enlace durou pouco tempo, sendo Billie Holiday criada pela mãe e alguns parentes. Ao longo de sua adolescência, nas poucas vezes em que encontrou o pai, a futura cantora sempre tentava arrancar-lhe algum dinheiro com a ameaça de dizer a suas namoradas que ele tinha uma filha.

Criada num bairro miserável da cidade de Baltimore, aos onze anos Holiday foi violentada, fato que, aliado à vadiagem da menina, fez com que ela passasse dois anos num reformatório católico. Pouco depois ela partiu com sua mãe para Nova York, instalando-se no bairro do Harlem. No ano de 1929, foi novamente violentada, desta vez por um vizinho. Sua mãe surpreendeu o ato infame, denunciando o agressor, que foi preso. Pouco depois, a adolescente entrou para um bordel, onde trabalhou como prostituta por algum tempo.

No início dos anos 30, Billie Holiday começa a se apresentar em casas de noturnas especializadas em jazz, construindo um estilo leve e sensual de cantar que lhe proporcionou rápido sucesso. A canção que marcaria sua carreira, no entanto, “Strange fruit”, cantada por Holiday com profunda emoção, trata do linchamento de negros no sul dos Estados Unidos, fenômeno bastante comum na época. O “estranho fruto” em questão eram os corpos das pessoas de sua raça que ficavam pendentes nos galhos das árvores, quando enforcadas. O sucesso de sua interpretação dessa canção lhe trouxe grande popularidade e admiração entre a intelectualidade nova-iorquina, projetando aquela que seria a mais brilhante intérprete da história do jazz.

A cantora invariavelmente se relacionava com homens cafajestes que a exploravam, humilhavam e roubavam. Em 1941, quando estava no auge do sucesso, ela se casou com um trombonista de segunda categoria, Jimmy Monroe, que a iniciou no uso de drogas pesadas. Pouco depois, Holiday passou a viver com o trompetista John Guy, também músico de pouca expressão, que desde seu casamento anterior lhe fornecia drogas. Ambos se apropriavam descaradamente do dinheiro da cantora. Separando-se de Guy em 1947, Billie Holiday teve inúmeros amantes nos dois anos seguintes, invariavelmente malandros da boemia de Nova York. Até que se casou novamente, agora com John Levy, também viciado em drogas, que a espancava diariamente e também a roubava. Abandonando-o em 1952, casou-se pela última vez, novamente com um gigolô, Louis McKay, mafioso e viciado em drogas, que também batia nela. No meio desse relacionamento, a cantora chegou a envolver-se por algum tempo com o diretor de cinema Orson Welles.

O abuso das drogas e do álcool, aliado aos espancamentos que Holiday sofria de seus maridos, só podia resultar na deterioração de sua saúde. Sua voz tornou-se um tanto áspera, perdendo a vibração do início da carreira. Em várias ocasiões ela engordou bastante, chegando a pesar 98 kg. Em 1947, passou oito meses na prisão após ter sido apanhada com drogas. Apesar disso, sua figura transmitia dignidade e pureza, e suas interpretações continuavam inigualáveis. Tanto que, no ano de sua morte, num tempo de forte segregação racial, ela lotou o prestigioso Carnegie Hall, em Nova York.

Em maio de 1959, Billie Holiday foi para o hospital com problemas no fígado e no coração. Dias depois foi decretada sua prisão domiciliar devido a um lote de heroína encontrado em sua cabeceira. Possivelmente a droga foi plantada em seu quarto. A cantora ficou sob a guarda da polícia até o dia de sua morte, por cirrose, a 17 de julho, aos 44 anos. Na sua conta bancária havia apenas 70 centavos de dólar, e consigo, 750 dólares. Após sua morte, entretanto, tornou-se mundialmente reconhecida e admirada como expressão máxima do jazz.

Como se vê, a história de Billie Holiday é a do artista excepcional que não sabe administrar a vida comum com sua burocracia e sua insipidez. Ela, que nunca teve filhos, adorava crianças e, quando via uma, abraçava-a e a enchia de beijos. Um de seus grandes prazeres era lavar pratos e arrumar a casa de madrugada, quando chegava dos estabelecimentos onde cantava. Quando algum fã lhe pedia autógrafo, ela dizia: “Obrigada por me amar”.

Frágil, forte, intensa e feminina, era uma mulher essencialmente sensual e bela que semeava paixões por onde passava, entre homens e mulheres. Certa vez, a atriz Ginger Rogers disse que “daria tudo para ter a boca de Billie Holiday”.

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Maria Callas (1923-1977)

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Tendo vindo ao mundo no subúrbio de Astoria durante uma curta temporada de seus pais gregos em Nova York, antes mesmo de nascer Maria Callas teve conflitos com sua mãe, que esperava ter um filho homem. Ao ver que havia dado à luz uma menina, a senhora se recusou até mesmo a dar simples uma olhada no bebê durante quatro dias.

Seus pais viviam constantemente em guerra conjugal. Por isso, quando a menina tinha treze anos, eles se separaram, e Callas partiu para a Grécia em companhia da mãe e da irmã, tendo o pai permanecido nos Estados Unidos. Na pátria de seus ancestrais, a futura cantora lírica foi posta para trabalhar e para cantar exaustivamente por sua despótica mãe, a fim de ganhar dinheiro para o sustento da casa.

Com sua genitora, Callas manteve por décadas um relacionamento extremamente difícil. Sua revolta teria começado já na infância, quando a mãe humilhava e insultava o marido, tratando-o constantemente aos gritos. Mais tarde, durante a ocupação da Grécia pelas tropas do Eixo, na Segunda Guerra Mundial, Callas teria sido pressionada por ela a se entregar a soldados alemães e italianos em troca de dinheiro e comida. Em 1950, durante uma temporada da cantora no México, as duas, que atravessaram a vida em acirrados conflitos, encontraram-se pela última vez, rompendo relações para sempre.

Nos tempos de sua formação como cantora lírica na Grécia, Callas impressionava pela total entrega aos estudos, dedicando-se dez horas por dia à música. Iniciando-se profissionalmente na Grécia, logo Callas passou a viver na Itália – o grande centro da ópera – onde rapidamente obteve enorme sucesso, surpreendendo pelo virtuosismo e a versatilidade. Pouco depois conheceu o sucesso também nos Estados Unidos, onde se estabeleceu por algum tempo depois de uma viagem para reencontrar o pai.

Após despontar para o estrelato e se apresentar regularmente nas mais importantes casas de ópera do mundo, a carreira de Maria Callas foi relativamente curta, tendo atravessado os anos 1950 até 1965, quando ela abandona os palcos. Já no final da década de 50 sua voz começou a declinar, possivelmente em decorrência de freqüentes dietas para emagrecer. Para alguns, o que afetou sua voz foram os papéis muito pesados em que ela atuou no início da carreira. Nos anos 60 ela diminuiu bastante sua participação em óperas completas, restringindo-se a recitais e noites de gala. Após alguns anos de ostracismo, Callas inicia uma carreira de professora de música, retornando aos palcos somente em 1974, quando realizou uma série de concertos. Atacada pela crítica, decidiu encerrar definitivamente a carreira de cantora lírica. Três anos depois, a grande soprano morreria de um ataque cardíaco em Paris. Cremada, suas cinzas foram lançadas no Mar Egeu.

A vida pessoal de Maria Callas recebeu tanta atenção quanto suas realizações profissionais. Ela foi uma das figuras prediletas da imprensa popularesca, que explorou à exaustão os escândalos em que a cantora freqüentemente se envolvia. Os problemas com sua mãe, seu temperamento forte, uma suposta rivalidade com a soprano Renata Tebaldi, sua indisposição com maestros e colegas em nome de suas convicções estéticas, seus conflitos com os empresários da ópera que pretendiam estender suas extenuantes temporadas, o declínio de sua voz forneciam farto material para a imprensa marrom.

Certa ocasião, Callas subiu ao palco gripada, contra a recomendação médica. Após uma performance medíocre no primeiro ato de Norma, a cantora fugiu pela porta dos fundos da Ópera de Roma. Em outra ocasião, apresentando a mesma peça, ela desmaiou logo após a primeira cena, tendo o espetáculo sido interrompido.

Nada, porém, alimentou mais o sensacionalismo barato que seu relacionamento amoroso com o magnata grego Aristóteles Onassis. Callas se casou pela primeira vez em 1949, com o industrial italiano Giovanni Battista Meneghini, que se tornou seu empresário. Dez anos depois, em 1959, ela o abandonou para ir viver com Onassis, com quem, em 1960, teve um filho que morreu poucas horas depois do parto. Em 1968, o armador a abandonou para ir viver com Jacqueline Kennedy. No entanto, mesmo após o casamento com a viúva do ex-presidente americano, Onassis encontrava Maria Callas com freqüência, tendo ela passado da condição de esposa para a de amante.

Callas foi talvez o maior mito da música lírica, tendo sido qualificada pelo maestro Leonard Bernstein como “a Bíblia da ópera”. Sua beleza de fortes e marcantes traços remete de imediato à tragédia que encenou nos palcos e viveu em seu próprio destino.

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Claudia Cardinale (1938- )

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Nascida na capital da Tunísia de pais italianos, Claudia Cardinale iniciou-se no cinema após ganhar um concurso de beleza em seu país de nascimento em 1957. No início de sua carreira, o produtor Franco Cristaldi, com quem ela logo se casaria, foi seu mentor. Por ter uma voz bastante grave, em seus primeiros filmes suas falas eram dubladas por outra atriz, a fim de se ajustar melhor às personagens que representava.

A filmografia de Claudia Cardinale é muito extensa, sendo a maior de todas as atrizes de sua geração. Atuou com destaque em obras-primas como O leopardo (1963), Rocco e seus irmãos (1963), A Pantera Cor-de-rosa (1964), (1968), Era uma vez no Oeste (1968), Fitzcarraldo (1982) e Um homem apaixonado (1987).

Logo aos 17 anos, Cardinale teve um filho com um senhor francês já casado, que nunca o reconheceu. Cristaldi o criaria como pai durante o tempo em que durou seu casamento com a atriz. A partir 1975, ela vive com o diretor Pasquale Squitieri, com quem tem uma filha.

Mulher de fortes convicções políticas de esquerda, Claudia Cardinale há muito está envolvida na luta pelos direitos das mulheres e dos homossexuais, além de outras causas humanitárias. Desde 1999 é embaixadora da UNESCO para a defesa dos direitos da mulheres. Vivendo em Paris, ela freqüentemente reafirma ter orgulho de suas raízes árabes.

Se Catherine Deneuve identifica-se como uma beleza tipicamente francesa a ponto de seu rosto representar o país, pode-se dizer que Cardinale encarna uma beleza tipicamente italiana. Por causa dos filmes em que atuou ou dos estereótipos relacionados a sua nacionalidade, a simples visão de sua figura como que evoca as possíveis maravilhas de uma abstrata mulher italiana.

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Catherine Deneuve (1943- )

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Nascida em Paris, filha de pai e mãe atores, Catherine Deneuve é a segunda das quatro filhas do casal. Sua irmã mais velha, Françoise, que morreu em 1967 num acidente automobilístico, também era atriz. Deneuve nunca atuou no teatro por ter medo do palco, mas aos 13 anos estreou no cinema, atuando em vários pequenos filmes durante a adolescência.

Nos anos 1960 a atriz se tornaria um símbolo sexual representando mulheres lindas mas frígidas em filmes de grandes diretores europeus. O mais célebre deles, pelo qual a atriz tornou-se internacionalmente reconhecida, é A bela da tarde (1967), de Luis Buñuel.

Catherine Deneuve casou-se três vezes: primeiro com o diretor Roger Vadim, o descobridor de seu talento, com quem teve um filho em 1963; depois com o fotógrafo de moda inglês David Bailey, e finalmente com o grande ator italiano Marcelo Mastroianni, com quem teve uma filha. Nos anos 70, teria ainda um relacionamento com o diretor François Truffaut, que teve uma crise nervosa após o rompimento com a atriz. Outro de seus affairs foi o ator americano John Travolta.

Nas décadas de 70, 80 e 90, Deneuve construirá uma sólida carreira cinematográfica, atuando com destaque em filmes importantes como Tristana, O selvagem, O último metrô, Indochina e Place Vendôme. Sua beleza extrapolou o cinema, associando-se ao mundo da moda e da indústria dos cosméticos. O estilista Yves Saint-Laurent desenhou modelos exclusivos para que ela usasse em vários se seus filmes. O perfume Chanel nº 5, associando-se à imagem da atriz, foi o mais conhecido e o mais vendido do mundo por mais de vinte anos. Nos anos 70, Deneuve seria eleita pela imprensa dos Estados Unidos como a mulher mais elegante do mundo. Entre 1985 e 2000, ela tornou-se a efígie de Marianne, a alegoria feminina que representa a república francesa, estampada em selos e moedas. Uma marca de perfume leva seu nome, e a própria Deneuve tornou-se designer de óculos, sapatos, jóias, perfume e cartões.

Catherine Deneuve encarna melhor que ninguém o mito que se construiu em torno dos franceses como um povo elegante, refinado, cheio de esprit e cultura humanística. Por seus filmes, sua aproximação com o mundo da moda e o emprego de seu rosto para a figura de Marianne, ela tornou-se, na idade madura, a grande dama francesa por excelência.

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Leila Diniz (1945-1972)

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Nascida em Niterói, no Rio de Janeiro, Leila Diniz teve uma curtíssima carreira como atriz e símbolo da libertação da mulher nos anos 60. Aos 17 anos, quando trabalhava como professora num jardim do subúrbio carioca, conheceu o cineasta Domingos de Oliveira, com quem logo se casou. Três anos depois eles se separariam, mas no tempo em que foi casada com Oliveira ela iniciou sua carreira no teatro e na televisão, trabalhando em telenovelas. Mais tarde Leila se casará com outro cineasta, o diretor Ruy Guerra, com quem teve uma filha. Por ocasião deste segundo casamento, ela se desenvolve uma carreira cinematográfica, vindo a atuar em quatorze filmes.

Numa época em que o machismo e a repressão política e sexual eram extremamente fortes no Brasil, Leila Diniz seguidamente escandalizava a sociedade brasileira pela ousadia de suas declarações à imprensa e seu comportamento livre de convenções. No final dos anos 60, causou furor ao aparecer na praia de biquíni, em avançado estado de gravidez. Pela mesma época declarou à imprensa que transava “de manhã, de tarde e de noite”. A frase chocou inúmeras suscetibilidades e cinismos num tempo em que o poder político fazia enorme questão de zelar pelo que considerava “os bons costumes”. Tanto a direita mais conservadora quanto a esquerda mais radical criticavam-na sob o qualificativo de ser uma mulher vulgar.

A atriz era uma das figuras favoritas dos jornalistas. Entrevistas e reportagens sobre ela invariavelmente causavam grande repercussão. Leila falava abertamente de sua vida íntima e disparava palavrões como forma de provocação aos reacionários e sectários de todos os credos e posicionamentos políticos.

Em 1972, Leila Diniz morreu num desastre de avião, na Índia, aos 27 anos. Linda e sedutora, ela tornou-se um mito, tendo tido um papel importante como referência para as conquistas das mulheres no decorrer dos anos 70.

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Diana Krall (1964- )

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Nascida em Nanaimo, na Colúmbia Britânica, Canadá, desde bem cedo Diana Krall esteve em contato com os grandes jazzistas através da grande coleção de discos de seu pai. Aos quatro anos começou a aprender a tocar piano, e na adolescência integrou um pequeno grupo de jazz. Partindo para os Estados Unidos, estudou música no Berklee College of Music, em Boston. Após uma estadia em Los Angeles, partiu para Nova York no início dos anos 90, onde gravou discos que a projetaram para o sucesso. Casada com o músico pop Elvis Costello, tem dois filhos gêmeos.

Loira, alta, de lábios carnudos e voz sensual, Diana Krall é o sal da terra num país de povo tão marcado por loiras insípidas e sem nenhum apelo sexual.

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Obviamente, com esse grupo de mulheres significativas, não quero dizer que para ser bela a mulher tenha de ter a força de uma Frida Kahlo ou de uma Olga Benario, o talento de uma Billie Holiday ou de uma Greta Garbo, a liberdade de uma Mata Hari ou de uma Lou Salomé, a sabedoria de uma Cleópatra ou de uma Heloísa. No entanto, indubitavelmente, a beleza feminina vai muito além do convencional e do pré-fabricado. O que há de se ter é uma individualidade forte e marcada, uma riqueza humana que pode se expressar numa alegria renovadora, num sofrimento vitalizante, numa graça inspiradora, em ações desprendidas. Felizmente por aí caminham anônimas, entre nós, um bom número dessas belezas fundamentais, por certo bem longe dos paparazzi e do que a indústria da moda conseguiu entronizar como o bonitinho do momento.

sexta-feira, 13 de abril de 2007

Omlet

Frivolidade, teu nome é coluna social.

Paraísos imaginários

Adriano de Paula Rabelo

Sempre que o ser humano se sente acossado pela miséria, a opressão, a violência, a falta de perspectivas, inevitavelmente imagina lugares plenos de abundância, liberdade, paz, felicidade, bem-aventurança; realidades em que os problemas humanos estão resolvidos e a vida é gozo perpétuo. A literatura, o cinema, a música, as artes plásticas, os livros sagrados nos oferecem inúmeros exemplos disso.


Os antigos egípcios imaginavam os campos de Aaru, o além onde reinava o deus Osíris, lugar ideal para a caça e pesca, onde os mortos iniciavam a vida eterna após seu julgamento. Aqueles cujas más ações os desqualificavam para o reino de Aaru eram enviados para uma segunda morte.


Por sua vez, os gregos da Antiguidade acreditavam nos Campos Elísios, lugar no mundo subterrâneo onde a sombra dos homens virtuosos repousava após sua morte. Governados por Hades, os Campos Elísios eram constituídos por belas paisagens naturais. Seus habitantes, em alguns casos muito especiais, poderiam receber autorização para retornar ao mundo dos vivos. Em oposição a essa espécie de paraíso, estava o Tártaro, lugar de tormento e sofrimento eternos.


O Jardim do Éden, paraíso descrito nos livros judaicos e na Bíblia, repete os lugares-comuns míticos de inúmeras culturas primitivas, sendo um lugar pleno de amenidades e belezas naturais onde o homem não precisa ganhar a sobrevivência com o suor de seu rosto e onde todos os animais são mansos. Outro lugar-comum do momento primordial de diversas culturas é a perda do paraíso pela iniqüidade humana, muitas vezes desencadeada pela mulher.


Muitas religiões e filosofias espirituais concebem para depois da morte um retorno ao paraíso, em geral para aqueles que praticaram o bem durante a vida. Lugar de eterna bem-aventurança, em alguns casos o paraíso pós-morte é também habitado por almas exemplares, anjos, heróis, deuses e deusas. Em muitos casos, o paraíso é apresentado como compensação para os sofrimentos e as misérias deste mundo.

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Hesíodo, já nos primórdios da literatura grega, em seu poema “Os trabalhos e os dias” imagina o seu lugar ideal não no espaço mas no tempo. Para ele, a humanidade havia atravessado cinco idades: a dos homens de ouro, a dos homens de prata, a dos homens de bronze, a dos Heróis e a dos homens de ferro. Obviamente esta última seria a era contemporânea do poeta, tempo em que os deuses haviam enviado dor, fadiga, confusão e discórdia por causa da soberba humana. Por isso, Hesíodo lamenta não haver nascido antes.




A era de ouro – Lucas Cranach (1472-1553)


Já na Grécia clássica, Platão concebe, em A República, uma cidade-estado fictícia cuja organização social funciona perfeitamente, governada pelos filósofos – aqueles que são preparados para se tornarem os sábios e os melhores –, estando expulsos os poetas, seres que nada produzem de útil.

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A Idade Média, com suas grandes crises de fome, opressão e falta de liberdade, será uma era em que a imaginação de lugares ideais será bastante fértil. O mais famoso deles é o país da Cocanha, lugar de plena abundância de víveres, onde o trabalho era desnecessário para ganhar a vida. Na Cocanha, os rios são de vinho e leite, as colinas de queijo, pedaços de ganso grelhado voam diretamente para a boca das pessoas, leitões transitam já assados e com uma faca espetada no lombo e peixes saltam das águas para as margens dos rios, aos pés dos pescadores. A temperatura é permanentemente amena, o sexo é praticado livremente e sem repressões. Ninguém envelhece nem adoece.

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Ainda da Idade Média vem o conto de fadas “Joãozinho e Mariazinha”, compilado pelos irmãos Grimm. Ao se perderem na floresta, as duas crianças, que pertencem a uma família miserável, seguem um pássaro branco de canto mavioso que os conduz até uma casa feita de pão, com telhado de bolo e janelas de doce. Apanhados pela bruxa que habita a casa, são presos e postos para engordar a base de muitas guloseimas, a fim de serem devorados pela horrenda senhora. Ao final, Joãozinho e Mariazinha conseguem matar a bruxa, lançando-a nas chamas da fogueira que iria assá-los, retornando para casa felizes e bem alimentados.

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País da Cocanha – Pieter Bruegel (1525-1569)
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No início do século XIV, Dante Alighieri reelabora a escatologia da Igreja medieval, colocando no Inferno os que praticaram o mal em vida, no Purgatório aqueles que se arrependeram tardiamente de seus pecados, para que sejam expiados, e no Paraíso os que conquistaram a eterna bem-aventurança através da prática do bem. Guiado por sua amada Beatriz, em sua trajetória celestial Dante encontra Santo Tomás de Aquino e o imperador Justiniano, é interrogado pelos santos sobre suas concepções filosóficas e religiosas. Ao adentrar nos círculos angélicos, que giram em torno de Deus, Dante adquire a capacidade de compreender o mundo espiritual. Por fim, diante da visão da Rosa Mística, separa-se de Beatriz para sentir diretamente a emanação do amor de Deus, aquele que “move o Sol e as outras estrelas”.

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No século XVI, na era das grandes navegações, com a invasão do chamado Novo Mundo pelos europeus e o saque das riquezas das grandes civilizações americanas num tempo em que a riqueza dos estados era medida pelo montante de sua acumulação de ouro, muito se buscou o Eldorado, lugar que os indígenas afirmavam existir em algum ponto perdido do continente. Conforme suas descrições, tratava-se de uma cidade de plena opulência onde as construções seriam todas em ouro maciço, ostentando tesouros em quantidades inimagináveis. “El Dorado” significa, em língua espanhola, “o homem dourado”. Conforme os relatos colhidos pelos colonizadores, tal era quantidade de riquezas no lugar que o imperador local tinha o hábito de rolar sobre ouro em pó, fazendo com que todo o seu corpo adquirisse a cor dourada.


Em 1516, Thomas Morus publicou seu livro Utopia, criando um neologismo com termos gregos que significavam “não-lugar” ou, em outra interpretação, “lugar bom”. Escrevendo num tempo em que a miséria se alastrava na Europa e os conflitos religiosos se acirravam, Morus imagina uma ilha no Novo Mundo onde seriam abolidas a propriedade privada e a intolerância religiosa. As leis eram justas e todas as instituições estavam comprometidas com o bem-estar da coletividade. Mais tarde, a palavra “utopia” se transformaria num substantivo comum, sendo utilizada politicamente de duas formas opostas. Para os donos do poder, os projetos utópicos representam concepções generosas porém irrealizáveis, ilusões, quimeras; para os que lutam por justiça e equilíbrio entre os cidadãos, esse “não-lugar” é o lugar ainda não realizado mas possível que justifica a luta política para mudar o status quo a fim de se alcançar o “lugar bom”.

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Outros utopistas modernos foram Tommaso Campanella, autor de A cidade do sol (1623), e Francis Bacon, autor de A nova Atlântida (1627). Assim como a obra de Morus, esses livros concebem uma organização social em que os homens vivem felizes, tendo todos os problemas materiais básicos resolvidos, mantendo entre si relações pacíficas e fraternais. Tal organização se baseia nos princípios da racionalidade - que fundamentam um Estado regido por princípios matemáticos e científicos que buscam eliminar a imprevisibilidade e proporcionar segurança aos membros da comunidade.


No século XVIII, com a radicalização do racionalismo moderno, diminuíram as grandes idealizações de lugares paradisíacos para onde se evadir das realidades brutais. Ainda assim, o Novo Mundo continuou sendo um lugar que instigava a imaginação européia, constituindo ora uma natureza virgem onde se pode escapar do cansaço civilizatório, ora um lugar de abundância onde para sobreviver basta colher o que essa natureza proporciona gratuitamente e aonde aventureiros podem vir em busca de riqueza rápida, ora um lugar habitado por nativos naturalmente bons, ora uma terra prometida onde se podia recomeçar a vida longe das perseguições sofridas no Velho Mundo.


No decorrer do século XIX, grandes ondas migratórias para o continente americano reatualizaram o mito da terra prometida. Talvez por terem sido os destinatários de variados fluxos de migrantes e terem se realizado como a grande potência político-econômica do século seguinte expliquem em parte a arrogância e o isolamento que têm marcado a história dos Estados Unidos em suas relações internacionais. O mito da terra prometida tem sido inclusive uma justificativa para o seu imperialismo.


Um poeta romântico inglês, Samuel Taylor Coleridge, fará com que, no mesmo século XIX, outro lugar imaginário torne-se célebre: Xanadu. Capital oriental do império chinês no tempo de Kublai Khan, no século XIII, a cidade situava-se no interior da Mongólia. Tendo sido visitada pelo veneziano Marco Polo em 1275, Xanadu tornou-se conhecida no Ocidente após a publicação dos relatos de viagem do grande navegador, que descreve a riqueza de seus palácios e a vida morigerada de seus habitantes, que praticavam as filosofias confucionista e taoísta. Coleridge, em sua imaginação, amplia muito as maravilhas do lugar, pintando um reino de opulência e beleza inigualáveis.


No século XX, a Razão entrou em crise aguda, por não ter conseguido resolver os problemas sociais, políticos, psicológicos e espirituais com que os homens vêm se debatendo há milênios, o que ela havia prometido. Muitas sociedades enfrentaram horrores em escala nunca antes imaginada, toda sorte de infâmia foi praticada contra adversários políticos, países foram arruinados por guerras, catástrofes naturais, vampirismo imperialista. Nesse contexto, surgiram-se outras grandes concepções de lugares imaginários com características paradisíacas. Ao menos um deles se tornou mundialmente famoso: Shangri-La, também situado no Oriente.



Região onde James Hilton situa o paraíso de Shangri-La


Em 1933, o escritor inglês James Hilton publicou o romance Horizonte perdido, em que, baseado na lenda budista de Shambhala, uma cidade desaparecida que tinha a forma de uma flor de lótus de oito pétalas, imagina uma aldeia paradisíaca situada no sopé de uma montanha no Tibete, para onde vai um grupo de pessoas fugindo da guerra. Nessa Utopia oriental, isolada do mundo ocidentalizado, tudo concorre para o bem comum, e a felicidade decorre do cultivo de valores opostos à ganância e ao materialismo da tradição européia. Encontrando paz e sabedoria, os fugitivos dos horrores da guerra conseguem superar o sofrimento, a velhice e a morte nessa espécie de novo Jardim do Éden.

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No âmbito da História, a realização da sociedade comunista, tal como teorizada por Marx, foi a grande utopia de todos os que sonharam com a superação das misérias, dos crimes e das enormes desigualdades inerentes ao sistema capitalista.

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Uma analogia com esses lugares ideais poderia ser feita com a busca pela posse de coisas que proporcionariam amor, felicidade, riqueza ou salvação a um indivíduo ou uma coletividade. A busca dos alquimistas pela pedra filosofal e o elixir da longa vida, a dos cruzados pelo Santo Graal, a de Juan Ponce de León pela Fonte da Juventude, a dos primeiros cientistas modernos pelo moto-contínuo ou a do Capitão Ahab por Moby Dick também podem ser lidas como metáforas para a realização de ideais utópicos e felicidades paradisíacas.

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Já a esperança pelo retorno de redentores e a ação de líderes fortes se dá na perspectiva do resgate de paraísos perdidos ou da instauração de reinos de bem-aventurança. Cristo irá restaurar o paraíso para os bons após o Juízo Final. D. Sebastião irá recuperar o esplendor o império português. D. Quixote se imagina a suma dos ideais cavalheirescos, partindo para o mundo com a missão de libertar os fracos e oprimidos. Antônio Conselheiro funda a sua Canaã no sertão baiano com os desclassificados da então nascente república brasileira. Hitler pretende inaugurar o Terceiro Reich para a glória da raça ariana. E todos os fundadores de religião se imaginam novos cristos a conduzir seu rebanho para a beatitude eterna.

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Retornando aos paraísos imaginários como sítios de infinitas amenidades e riquezas, no âmbito da cultura popular brasileira recente nos lembramos de três momentos representativos, um na poesia e dois na música popular.

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Clássico dos clássicos da poesia brasileira, “Vou-me embora pra Pasárgada”, de Manuel Bandeira, exprime o desejo de evasão de um poeta que durante quase toda a sua vida teve de conviver com as limitações e sofrimentos decorrentes da tuberculose, doença que até algumas décadas atrás matava enorme contingente de pessoas. Bandeira retirou o belo nome de seu paraíso imaginário de uma cidade da antiga Pérsia – hoje Irã – que no tempo de Ciro II foi uma das capitais do império. Em sua Pasárgada, o poeta liberta-se do trabalho e das aflições da existência comum para viver uma sexualidade livre e intensa, praticar atividades lúdicas ao ar livre, ter acesso a confortos da modernidade, aproveitar-se de boas relações com os donos do poder e, principalmente, superar a angústia de uma vida limitada e triste. A propósito, como costuma acontecer com os grandes poetas nacionais, o verso “Vou-me embora pra Pasárgada” acabou por tornar-se um bordão popular, sendo pronunciado sempre que a realidade se mostra por demais insípida e medíocre.

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Já Dorival Caymmi situa seu paraíso num lugarejo próximo a Salvador. No samba “Maracangalha”, escrito a partir da história de um amigo de sua juventude na Bahia, Zezinho, que forjava para a esposa a necessidade de ir fazer negócios na cidadezinha para lá se encontrar com a amante, dizendo “Eu vou pra Maracangalha”, o compositor constrói, com a simplicidade dos grandes artistas, uma canção que também trata da evasão de uma realidade opressora. Fugindo dos excessos e cansaços da civilização, o sujeito do texto afirma sua resolução de partir para Maracangalha usando simplesmente roupas brancas e chapéu de palha, se possível na companhia de Anália, a figura feminina que completará sua felicidade nessa Pasárgada baiana. A aproximação é válida inclusive pelo paralelismo entre o título e o refrão de cada texto.

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Por fim, lembremos um dos sucessos de Roberto e Erasmo Carlos, “Além do horizonte”, em que o sujeito da canção imagina um lugar com todas as características edênicas:

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Lá nesse lugar o amanhecer é lindo

Com flores festejando mais um dia que vem vindo

Onde a gente possa se deitar no campo

Se amar na relva escutando o canto dos pássaros

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No entanto, esse jardim de delícias só adquire sentido com a presença da mulher amada, podendo os dois enamorados restaurar a completude e felicidade do casal primordial antes do pecado original.

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Essa marcante presença dos tópicos paradisíacos nos imaginários erudito e popular atesta a universalidade e atualidade do tema. Indubitavelmente o ser humano necessita do imaginário do paraíso para poder suportar os acidentes da existência, construir sentido para a vida, manter esperanças e agir para a transformação do mundo.