sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Da necessidade

Cuspir no prato em que se comeu comida ruim.

Frases para a eternidade

Adriano de Paula Rabelo


Sou um colecionador de frases, especialmente aquelas cheias de verve, demolidoras de lugares-comuns e juízos massificados. O filósofo Ludwig Wittgenstein, profundo estudioso da linguagem, dizia que muito mais importante que a verdade ou a mentira de um enunciado é o efeito por ele provocado. Isso pode ser comprovado facilmente pelo êxito de políticos, advogados e comerciantes em nossa sociedade. Numa outra frente, que seria de todos os don juans do mundo sem a exuberância de sua lábia a serviço do efeito?

O fascínio da boa frase está em condensar o máximo de sentido no mínimo de suporte. Freud, em O chiste e sua relação com o inconsciente, apresenta um diálogo que atinge o fastígio da concisão e da espirituosidade, não pelo significado das sentenças isoladamente, mas pelos personagens envolvidos na conversação: “Como tem andado?”, perguntou um cego a um paralítico. “Como você está vendo”, respondeu o paralítico.

Paula Nei, boêmio e escritor bissexto do final do século XIX, ficou famoso pelo anedotário em torno de alguns de seus ditos, em geral surgidos de improviso ao sabor de sua vida desregrada. Conta-se que, numa Sexta-feira da Paixão, ele foi repreendido por um amigo que o encontrou embriagado pelas ruas. O boêmio, em tom hierático, teria respondido: “Quando a divindade sucumbe, a humanidade cambaleia”.

O calor de situações conflituosas é sempre propício a produzir frases rudes de grande efeito. É conhecido o contra-ataque do sempre ferino Winston Churchill, primeiro-ministro britânico, ao confrontar certa vez uma parlamentar que lhe havia dito que se fosse sua mulher lhe envenenaria o chá: “E se eu fosse seu marido, beberia esse chá”.


Um mestre da frase reproduzido na parede


Na literatura se poderiam colher inúmeros exemplos de frases que mereceriam ser escritas no mármore, com pedestal e descerramento de placa. Para ficar apenas na brasileira, as lavras de autores como Machado de Assis, Nelson Rodrigues, Guimarães Rosa, Otto Lara Resende e Clarice Lispector, por exemplo, são muito profícuas. De Machado me lembro logo da suprema auto-ironia de “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”. De Guimarães Rosa, da reviravolta cômico-sonora de “Pão ou pães, é questão de opiniães”.

Por falar no incomparável escritor de Cordisburgo, que transfigurou a linguagem do sertanejo do noroeste de Minas, me ocorrem algumas preciosidades ouvidas na boca do povo, principal guardião do tesouro da língua.

Minha mãe, que possui pouca ilustração mas bastante sabedoria, sempre me pareceu uma figura saída das páginas de Grande sertão: veredas ou de Primeiras histórias. Eu e minhas irmãs crescemos ouvindo-a pronunciar, ao longo dos anos, frases perfeitamente dignas de Guimarães Rosa. Uma delas é “Neste mundo não há o que não haja”. Toda vez que ela tem notícia de alguma invenção esdrúxula, algum dos inúmeros absurdos que povoam o nosso cotidiano, alguma extravagância ou declaração que a incomode, lá vem frase indefectível. Outra: “Fulano(a) tem cabelo estizicado”. Através da palavra lapidar, que não existe em nenhum dicionário, fica plenamente expresso o que ela quer dizer.

Certa ocasião, uma amiga que possuía namorado muito ciumento, ao me contar suas agruras, filosofou: “O barulho do ciúme desperta a curiosidade”. E numa roda de amigos alguém se lembrou de um provérbio originário não sei de onde, enfatizando a eloqüência feminina: “Um homem, uma palavra; uma mulher, um dicionário”. E, num velório, um parente do morto, olhando compungido para o protagonista do acontecimento: “Se morrer fosse bom, todos viríamos correndo e pularíamos de finquete ali dentro [no caixão]”. E num jogo informal de futebol que caminhava para o final num renhido empate: “Quem fazê ganha!”.

A propósito do futebol, esse reino de declarações espetaculares a jornalistas ávidos de sensação, circula por aí uma preciosa antologia de frases, algumas fruto do mais puro gênio, outras resultado de bobagens ditas genialmente. Lembrarei aqui apenas duas delas, pronunciadas por dois goleadores. O primeiro é Dadá Maravilha, uma das melhores figuras de nossa civilização, que, retrucando ao pernosticismo de alguns repórteres, disparou: “Não me venham com problemática, que eu tenho a solucionática”. E Jardel, ex-centroavante do Grêmio, logo antes de um jogo contra o maior rival, o Internacional, ao ser perguntado sobre a emoção de se jogar um clássico: “Clássico é clássico e vice-versa”.

A frase concisa e muito expressiva vale por todo um tratado acerca do assunto de que versa. Frases em latim costumam ser o lema de respeitáveis instituições nacionais. O mais belo livro da Bíblia, o Eclesiastes, é basicamente uma coleção de sentenças excepcionais. Há quem cultue certas frases como verdadeiros mantras ou guias de ação. Nos epitáfios, frases costumam resumir todo o sentido de uma existência. E o povo continua fornecendo ao idioma expressividades insuspeitas com sua inesgotável criatividade verbal.

Nesta época de correrias, excesso de informação desqualificada e de sensibilidades telegráficas, mais que nunca a frase bem dita tem seu lugar neste mundo, reino das palavras.

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Vigor

As histórias nutrem.

Meu filho dormindo

Adriano de Paula Rabelo


Deitado a seu lado nestes seus dois anos, penso nas sinuosidades da vida, no vaivém tormentoso e sem sentido de êxitos, perdas, mortes, ressurreições, saltos, recuos, estagnações e renascimentos que compõem este estar-aqui. O que lhe estará reservado? Que determinações e que escolhas constituirão seu destino?

Fecho os olhos e vejo-o refinado escritor, centroavante do Galo e craque absoluto das Copas de 2026 a 2038, polêmico diretor de cinema, intelectual influente... alguns de meus eus gloriosos que foram caindo pelo caminho. No fim das contas, não importará tanto o que você for, desde que não se desumanize.

Que cultive para sempre o sagrado horror à vidinha burguesa, às satisfações puramente argentárias, à prosperidade barriguda e aos valores massificados. Que afronte a injustiça onde quer que você atue. Que tenha respeito pelos humilhados e ofendidos e com eles se solidarize. Que possua olhos e coração para amar a beleza, ainda quando ela se apresentar em suas formas terríveis. Que aprenda a ser brasileiro antes de girar o mundo e enriquecer-se com a cultura diversa.


Canção dos anjos (1881) – William-Adolphe Bouguereau


Dentro de mais alguns anos recordarei com um sorriso seus passeios no meu ombro, quando íamos sem rumo pelas ruas, conversando. Seus infindáveis, surpreendentes porquês jamais ficavam sem respostas, ainda que mirabolantes. Recordarei nosso futebol no campinho, onde eu o ensinava a chutar, cabecear, controlar a bola parada no pé, pedalar sobre ela para driblar o adversário. E as beiras de rios, lagoas, córregos e poças d’água onde você ia jogar pedrinhas e assistir ao movimento das ondulações. E as inúmeras fotografias que eu tirava de suas pequenas grandes aventuras. E as histórias de meninos curiosos e passarinhos falantes que lhe contava. E suas despedidas da Lua e das estrelas antes de ir dormir.

Esta insólita saudade do presente chega-me do limbo do futuro, fazendo lembrar que os anos correm e cada um toma seu rumo. Você tomará o seu com suas próprias pernas. Personalidade forte, caráter assertivo, meu varão de dois anos dorme indiferente a essas elucubrações de pai diante da selva escura deste mundo. Dum vivimus vivamus.

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Vida fácil

As mulheres públicas têm feito coisas melhores que os homens públicos.

O vira-latismo nacional

Adriano de Paula Rabelo


Em suas crônicas de futebol, Nelson Rodrigues discutia obsessivamente aspectos relacionados ao caráter nacional. O escritor identificava em nossos jogadores e também no brasileiro em geral um sentimento de inferioridade e uma postura de humildade em relação ao estrangeiro, em especial àquele proveniente do chamado Primeiro Mundo, e mais especialmente ainda ao anglo-saxão. A esse fenômeno, qualificado como abjeto, o cronista dava o nome de “complexo de vira-latas”, definindo o brasileiro como um “Narciso às avessas, que cospe na própria imagem”.

Nisso, como em tantas outras coisas, Nelson foi lúcido e profético. A reverência pelo estrangeiro, acompanhada pela autodepreciação, tem persistido como uma doença crônica de nossa psicologia coletiva.

No senso comum, por exemplo, é muito freqüente que se diga, quando algo dá errado ou do qual não se gosta, que tal coisa é possível “só no Brasil mesmo”. Como se fôssemos depositários de tudo de ruim que há no mundo, estivéssemos condenados irrevogavelmente ao fracasso como nação e o idealizado exterior fosse uma espécie de País da Cocanha.

Credita-se do jornalista Márcio Moreira Alves uma frase que é um primor de vira-latismo: “Tudo o que existe só no Brasil e não é jabuticaba é ruim”.

Henfil, em seu excelente Diário de um cucaracha, conta o seguinte (triste) episódio ocorrido numa reunião de emigrados brasileiros de que participou nos Estados Unidos: “E aí, brasileiro é muito animado, alguém bem de leve, assim meio envergonhado, tira da bolsa uma maquininha fotográfica daquelas que não precisa fazer nada. É só apertar e pronto. ‘Detesto botões.’ Quanto custou? Baratíssimo! Onde? Rua 46. E outro diz que tem uma igual, mas que comprou (orgulho) foi na Macy’s, bem mais caro. Acha ele, sem se importar com a indelicadeza, que estas butiques brasileiras vendem barato porque tá tudo com defeito de fábrica. Por isso, arremata seguro: só compro na Macy’s ou na Blumendalles (sei lá cumé que escreve isto)!”

Se se der uma corrida de olhos numa série de filmes nacionais lançados recentemente, lá estará nossa humildade exibicionista diante do personagem anglo-saxão, que é sempre um raisonneur, alguém que pondera sobre a esculhambação e a incompetência desfilam diante dos seus olhos. Para se comprovar isso, assista-se Carlota Joaquina: Princesa do Brazil (1995), de Carla Camurati, Jenipapo (1995), de Monique Gardenberg, Como nascem os anjos (1996), de Murilo Salles, O que é isso, companheiro (1997), de Bruno Barreto, Orfeu (1999), de Cacá Diegues, Bossa nova (2000), de Bruno Barreto...

Interessante o alvoroço que se faz quando alguma das grandes agências noticiosas ou algum dos periódicos mais bem sucedidos comercialmente dos Estados Unidos ou da Europa noticia alguma coisa sobre o Brasil, quase sempre algum dos nossos horrores sociais ou alguma catástrofe. O terem dado a notícia é notícia aqui!!! Sair alguma coisa no New York Times, então, é a glória suprema, a chancela máxima do indefectível mundo anglo-saxão.


Um dos nossos maiores críticos sociais, inimigo do “complexo de vira-latas”


Retornando ao futebol e a Nelson Rodrigues, o anjo pornográfico deve estar se revirando no túmulo. Há alguns meses, por três times da Inglaterra terem chegado às semifinais da Liga dos Campeões da Europa, nosso jornalismo esportivo, em sua quase unanimidade, passou a exaltar o famigerado futebol inglês – com seus chutões, suas correrias desabaladas e seus carrinhos – como o melhor do mundo. Babou-se muito elogio vira-lata ao jogo coletivo, à velocidade, ao preparo físico, à organização tática dos ingleses. Ao mesmo tempo, criticou-se o baixo nível técnico do Campeonato Brasileiro deste ano, o nivelamento dos times etc., etc. Parece que havíamos retornado ao tempo das crônicas de Nelson, com todos os ingredientes da abjeção que motivou seus textos. Para usar uma imagem cara ao grande escritor, até um paralelepípedo reconhece a superioridade ululante do futebol brasileiro sobre o europeu. Menos os “entendidos” em futebol.

Curioso como é muito comum ouvir de estrangeiros que imigraram para o Brasil, mesmo dos impolutos anglo-saxões, a opinião de que se sentem privilegiados por viver aqui. Curiosíssimo como a crônica esportiva européia não se cansa de exaltar permanentemente o futebol brasileiro, que obviamente nada mais precisa provar a ninguém.

Quem já viveu em qualquer país do exterior e possui um mínimo de capacidade de observação e análise, sempre retorna com uma visão mais equilibrada das coisas. Enfrentamos problemas gravíssimos, muitos deles ainda relacionados às questões mais básicas dos direitos da cidadania. Nossa sociedade civil é, de fato, bastante frágil. Muitas de nossas instituições funcionam precariamente. Nossa casta dominante segue cada vez mais desabusada. Porém, temos uma cultura original que nada fica a dever às do mundo imperialista, possuímos densidade histórica, uma identidade e valores próprios. Por isso, é de uma indignidade absoluta a postura humilde diante de outros povos, a ansiedade pelas bênçãos dos centros rapinadores.

O complexo de vira-latas vem exercendo, no Brasil, um papel político importante. Nossa casta dominante – e seus imitadores da classe média – sempre viveu espiritualmente em certas metrópoles do exterior, as quais, em seu “universo” de pensamento, monopolizariam tudo de bom que há no mundo. De lá sempre importaram seus códigos de diferenciação e prestígio: a língua estrangeira, a moda, as tecnologias, os nomes de seus filhos, o estilo de vida. De resto, nossa gente, nossa organização, nossas tradições e nossas coisas são “de baixo nível”, “uma bagunça”, “um atraso de vida”, “não tem nada a ver”, “brega”, “coisa de negro, de nordestino, de índio”, “só no Brasil mesmo”. Por força da repetição pelos seus aparelhos ideológicos, conseguiram que até mesmo uma parte da plebe saia babando essas tolices por aí. E os inferiores que se recolham ao seu devido (e imutável) lugar.

Sem dúvida que, para se mudar esse estado de coisas com o qual a enorme maioria das pessoas está profundamente insatisfeita no Brasil, é fundamental que se reconheçam os nossos valores, que tenhamos orgulho genuíno de sermos o que somos, que dialoguemos com o exterior de cabeça erguida, em determinadas ocasiões até mesmo com soberba. O maior obstáculo que temos a superar para construir um país melhor está em nós mesmos.

sexta-feira, 10 de agosto de 2007

Causa

Criminoso é um sujeito sem advogado.

Fundamentalismo democrático

Adriano de Paula Rabelo


Vivemos num tempo em que praticamente não se encontra mais quem não defenda o regime democrático. Após a derrota dos totalitarismos de direita e de esquerda, que tanta desumanização e tantos horrores espalharam pelo século XX, a democracia como sinônimo de soberania da vontade das maiorias se tornou ponto pacífico. Todavia, parece evidente que essa laboriosa, sofrida e necessária conquista da tradição política ocidental encontra-se em profunda crise. Por toda parte a democracia se degenerou no mais vulgar democratismo.

Vejamos: campanhas eleitorais são manipuladas pelos neocoronéis dos grandes meios de informação, governantes divorciados dos reais interesses da maioria sobem ao poder massivamente, legisladores vampirizam o Estado em sua promiscuidade com o poder econômico, juízes dão retaguarda a negociatas ou realizam-nas diretamente, energúmenos assumem postos de comando, movimentos sociais têm de se haver permanentemente com torturas e balas da polícia...

Num contexto como este, a economia está subordinada aos números, jamais à qualidade efetiva de vida das classes desprivilegiadas. Quando se diz que ela vai bem, isso significa que banqueiros e especuladores nacionais e estrangeiros estão ganhando quantias astronômicas. E as maiorias permanecem de fato deserdadas pelo poder público.

Sem dúvida é preciso repensar o conceito de democracia, que deve ir muito além da mera formalidade do processo eleitoral, do simples governo representativo, de ser uma emanação da demência das maiorias. Não se pode falar em democracia enquanto não estiver garantido o espaço para a consagração de indivíduos e grupos por suas reais qualificações e seus méritos, enquanto o povo não usufruir efetivamente da riqueza da nação.


O fundamentalismo democrático é um rebento deste nefando casalzinho


O fundamentalismo democrático, no entanto, talvez encontre sua expressão mais enfática no plano internacional. Em nome da democracia ao pé da letra, os bárbaros, os radicais, os extremistas ocidentais seguem violentando os povos subjugados. Neste momento de América Latina docilizada, de Bálcãs pacificados, de África ao deus-dará, de Arábia aliciada, as garras do imperialismo estão postas sobre o Iraque e o Afeganistão, a fim de se garantir o suprimento de petróleo a baixo custo para o conforto da pós-modernidade americana e européia. O democratismo lá está, arrasando os dois países rebeldes, cometendo diariamente toda sorte de crimes contra a humanidade por detrás da fumaça das explosões dos carros-bombas da resistência, alardeadas pelas agências noticiosas “globalitárias”.

A propósito, o geógrafo Milton Santos chamava de globalitarismo o sistema implantado nas últimas décadas pelo fundamentalismo democrático. O feliz achado vocabular, que vai muito além da dominação violenta das nações periféricas, define com precisão uma doutrina bastante integrada de políticas que só toleram uma única forma de viver, de pensar, de se organizar, subordinando todas as instituições. Se os totalitarismos do século XX exigiam a completa subserviência dos cidadãos ao Estado, a doutrina da totalidade contemporânea preconiza a vassalagem de todos em relação ao Mercado e ao modo de vida americano. Como tudo isso está distante de um conceito minimamente aceitável de democracia.

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

A gaia ciência

Toda verdade tem seu fundo de brincadeira.

Futebol-prosa, futebol-poesia

Adriano de Paula Rabelo


Pouco depois da partida final da Copa de 1970, o cineasta e poeta italiano Pier Paolo Pasolini – ele mesmo um bom e apaixonado meio-campista amador – publicou, no jornal Il Giorno, um artigo em que apresenta uma visão bastante original do futebol como uma linguagem que, em sua expressão mais refinada, produz seus poetas e seus prosadores.

O “sistema de signos” futebolístico, para Pasolini, reúne todas as características de uma linguagem, possuindo como unidade mínima o que ele chama de “podema” (do grego podos, pés), que corresponde a um jogador que utiliza os pés para chutar a bola. Os vinte e dois jogadores estão em analogia com as letras do alfabeto, combinando-se em infinitas possibilidades para a formação das “palavras futebolísticas” através de suas trocas de passes. Tais palavras, combinadas, formam um discurso regulado por normas sintáticas próprias, que se exprime nas características da partida. Esta se realiza como um verdadeiro discurso dramático. Os emissores da linguagem futebolística, portanto, são os jogadores, e seus decifradores, os torcedores. Ambos possuem um código comum, isto é, um repertório de fundamentos, tais como o chute, o passe, a marcação, o cabeceio, o lançamento, o combate e os esquemas táticos que exprimem o jogo elementar levado a cabo por todo time em campo. É como se fosse a linguagem instrumental, falada no dia-a-dia em situações marcadas pelo pragmatismo.

No entanto, o futebol atinge sua melhor expressão quando assume todas as características de um objeto estético por meio de seus subcódigos, tornando-se uma linguagem fundamentalmente prosaica ou poética. Tal distinção entre prosa e poesia, para Pasolini, é exclusivamente técnica, não havendo nenhum reconhecimento de superioridade de uma sobre a outra, mas adequando-se cada uma às inclinações próprias de cada jogador e de cada equipe. Está construída aí toda uma poética do futebol.

Esse interessante sistema teórico se aplica para classificar estilos de atuação de jogadores e países. Um jogador-prosador seria o cerebral, o que possui boa visão de jogo, controle de bola e passe excelente, participando do jogo o tempo todo, liderando o time e chamando a responsabilidade para si, adequando-se com mais facilidade aos esquemas táticos e navegando neles com eficácia. O futebol-prosa, para Pasolini, “baseia-se na sintaxe, no jogo coletivo e organizado, na execução racional do código”. Na tradição do futebol brasileiro, jogadores como Zizinho, Bellini, Nilton Santos, Didi, Gerson, Toninho Cerezo, Falcão, Dunga e atualmente Gilberto Silva e Kaká poderiam ser classificados como prosadores futebolísticos, vários deles, mais exatamente, praticantes de uma prosa poética. Já o jogador-poeta seria o solista, o talento individual, o mestre do drible, da jogada de efeito e do gol, isto é, aquele que, amparado por uma boa organização do jogo coletivo, subverte o sistema e a organização coletiva, reinventando o código em formas inesperadas e sublimes. A quintessência do futebol-poesia seriam, em nossa tradição, Pelé e Garrincha, mas muitas outras de nossas maiores glórias poderiam ser classificadas aqui: Friedenreich, Leônidas, Domingos da Guia, Jairzinho, Rivelino, Zico, Reinaldo, Romário e atualmente Ronaldinho Gaúcho e Robinho.


Pelé, sem tocar na bola, dribla o goleiro uruguaio Mazurkiewcz na semifinal da Copa de 1970


Pasolini considera que, por motivos históricos e culturais, o futebol praticado por certos países é essencialmente prosa, seja ela realista (como a da Inglaterra ou da Alemanha) ou estetizante (como a da Itália ou da França). Outros, por sua vez, praticam um futebol cuja essência é poesia, e a epítome do jogo poético, para o cineasta, é o futebol praticado pelos jogadores brasileiros, que “são os melhores dribladores do mundo e os melhores fazedores de gol”. Em geral o futebol europeu possuiria um caráter mais prosaico, e o sul-americano, um caráter mais poético.

Ampliando essa instigante classificação, talvez se poderia dizer que historicamente o futebol também tenha tido uma era fundamentalmente poética e outra fundamentalmente prosaica. O marco do final do primeiro desses períodos é justamente a Copa do Mundo de 1970, no México, em que o Brasil apresentou um futebol espetacular no qual se sobressaíram várias individualidades fulgurantes praticando um jogo cheio de lances de efeito. A partir da primeira metade da década de 70, podendo ser tomado como marco do início da nova era a Copa de 1974, na Alemanha, vencida pela anfitriã, o futebol tornou-se marcadamente prosaico. Tal revolução se realizou dentro e fora dos campos. De um lado, a evolução das técnicas de preparação física e dos esquemas táticos de forte apelo coletivista que propugnavam a marcação forte, a ocupação dos espaços e a saída rápida em contra-ataque conheceram enorme prestígio entre os treinadores de todo o mundo como sinônimo de futebol moderno, diminuindo sensivelmente o campo de ação do craque genial. De outro lado, o futebol se tornou um grande business, movimentando cifras astronômicas e eliminando espaços para o improviso e as ações de caráter romântico.


Garrincha prepara-se para driblar toda uma coletividade


Nesse novo contexto, muito haveria a dizer sobre o futebol brasileiro, que inicialmente teve dificuldade para se adaptar aos novos paradigmas, fracassando nas Copas de 74 e 78 como se jogasse de forma contrária a sua natureza. Uma tentativa de recuperar o futebol-poesia foi feita na Copa de 1982, na Espanha, em que o Brasil apresentou um jogo espetacular, de enorme apelo estético, mas foi derrotado nas quartas-de-final pela mesma prosaica Itália da final de 70. A partir de então, o futebol-prosa foi adquirindo cada vez mais defensores no país, a despeito de fracassos clamorosos nas duas copas seguintes. O futebol brasileiro prosaico, conhecido como “de resultados”, só se tornou vencedor quando abriu espaço para que a individualidade improvisadora resolvesse as partidas nos momentos difíceis, jogando muito em função dela. Assim foi com Romário em 1994 e com Ronaldo em 2002.

A trajetória do futebol brasileiro, ainda mais após a revolução futebolística dos anos 1970, tem mostrado que estamos condenados ao fracasso quando renunciamos ao nosso caráter personalista e macunaímico em nome da eficiência impessoal e prosaica que está na base de outras formações históricas e culturais. O espírito picaresco, o subdesenvolvimento criativo, o samba, a capoeira e a molecagem são aspectos inerentes ao nosso estilo de jogo e de vida. Por isso, os times que marcaram época e constituíram boa parte da mitologia dos grandes clubes brasileiros são aqueles que resultaram da junção feliz de várias individualidades excepcionais. Por exemplo: o Expresso da Vitória do Vasco da Gama na segunda metade dos anos 40, com Ademir e Heleno de Freitas; o Santos de Pelé, Coutinho e Dorval, e o Botafogo de Garrincha, Didi e Amarildo, nos anos 60; o Palmeiras da Academia de Futebol, com Ademir da Guia e Leivinha, e o Internacional de Falcão e Figueroa, nos anos 70; o Atlético Mineiro de Toninho Cerezo e Reinaldo, o Flamengo de Zico e Júnior, e o Corinthians de Sócrates e Vladimir, nos anos 80; o São Paulo de Müller e Raí no início dos anos 90.