sexta-feira, 8 de junho de 2007

Canalhice naturalizada

Adriano de Paula Rabelo


Nas últimas décadas uma avalanche cotidiana de corrupção nos três poderes vem conseguindo insensibilizar as pessoas em relação ao problema, que talvez seja o mais grave enfrentado pelo Brasil contemporâneo, uma vez que afeta diretamente as questões mais essenciais ligadas à educação, à saúde, à segurança pública, à capacidade de investimento do país em sua infra-estrutura. Pior, a canalhice vem passando por uma espécie de naturalização, sendo reconhecida pelo senso comum como válida e como parte do jogo político. Como nossa Justiça jamais conseguiu punir os donos do poder econômico, dissemina-se entre a população um sentimento de impotência e uma perigosa tolerância em relação à corrupção, abrindo espaço para que o cinismo se institua em larga escala, tanto na esfera pública quanto na privada. A partir daí, vem se consagrando cada vez mais uma concepção de que, embora as coisas devessem ser diferentes, elas são assim mesmo. Por isso, escolado pelos dráculas de Brasília, o cidadão comum passa a acreditar que todo mundo tem seu preço e que “a ocasião faz o ladrão”, que certos usos e costumes escusos estão consagrados e não há como escapar deles para se atingir objetivos no campo do empreendedorismo político e econômico.

Na peça Otto Lara Resende ou Bonitinha mas ordinária, de Nelson Rodrigues, o personagem Peixoto, ele mesmo um crápula, exprime bem a naturalização do mau-caratismo no senso comum, chegando ao ponto de identificar a canalhice como um traço distintivo do caráter nacional ao dizer que “no Brasil quem não é canalha na véspera é canalha no dia seguinte”. Mais interessante ainda é outro personagem de Nelson, figura muito freqüente em suas crônicas, “Palhares, o canalha”, cujo maior feito, alardeado orgulhosamente por ele próprio entre os amigos, foi beijar o pescoço da cunhada num corredor da casa em que habitava com toda a sua família. A partir de então, Palhares passa a ser conhecido como “o que não respeita nem cunhada”, é invejado por muitos e promovido no emprego.

Tais personalidades e acontecimentos típicos do mundo criado por Nelson Rodrigues nunca estiveram tão em evidência neste país em que os maiores disparates são possíveis. Um exemplo entre centenas que poderiam ser aqui arrolados: em 1997, o deputado federal José Gomes da Rocha, do Partido Social Democrático de Goiás, legenda posteriormente incorporada ao PTB, utilizou sua verba de gabinete para contratar sete jogadores de futebol e um supervisor para o Itumbiara Esporte Clube, time que disputava a primeira divisão do campeonato daquele estado. Um jornalista do Correio Braziliense, Lúcio Vaz, publicou uma reportagem-denúncia sobre o caso, provocando a suspensão do deputado pelo período de um mês. Passada a suspensão, no entanto, José Gomes da Rocha encontrou o mesmo jornalista no café da Câmara. O que então se passou é digno de “Palhares, o canalha”: o deputado foi na direção de Lúcio Vaz, levantou a mão como se fosse agredi-lo, mas subitamente abaixou-a para cumprimentá-lo, dizendo com efusão: “Muito obrigado, você garantiu a minha reeleição”. Explicou, então, que várias enquetes feitas pelas rádios de Itumbiara indicaram que cerca de 90% da população aprovava o que ele havia feito. E, de fato, na eleição do ano seguinte o deputado foi reeleito com mais de 20 mil votos a mais que na eleição anterior.

Esse carisma do canalha, bem como a tolerância em relação aos meios escusos para se atingir os fins da ambição individual, é um fenômeno que está clamando por estudos mais acurados da nossa sociologia. A concepção do sucesso como um acúmulo cada vez maior de dinheiro, poder e influência tem feito com que, num país onde quase todos acreditam nos fundamentos da ética cristã e gostam de se exibir como seus paladinos, regras mais pragmáticas que desconhecem a culpa e autonomizam o livre-arbítrio sustentem a ação efetiva de muita gente.


A outra face da canalhice naturalizada


O canalha nacional, muito especialmente aquele que vampiriza o Estado, serve-se de toda uma estrutura montada para facilitar-lhe a ação e para que ele escape de condenações judiciais nos casos que chegam a ser investigados e em que processos chegam a ser abertos. Servem-se de suas abomináveis imunidades, fazem um silêncio estratégico até que abaixe a poeira ou tentam explicar o inexplicável com sua aura de simpatia e cordialidade, negam tudo ou ficam indignados com o maior dos descaramentos, escalam seus advogados para pedir seus providenciais habeas corpus... Com o correr dos dias e dos novos escândalos que vêm para o proscênio do noticiário, tudo se esquece e o pulha vai viver a mais regalada e feliz das existências. Como contrapartida, aumenta-se a carga tributária, decai ainda mais a qualidade de vida das classes desprotegidas, a saúde e a educação públicas mergulham na indigência, dissemina-se a delinqüência, mais e mais excluídos povoam as ruas.

Há décadas as vozes da demagogia vêm fazendo uso da palavra “reforma”. Mas o máximo que conseguem promover – com o habitual estardalhaço – é o já consagrado “mudar para ficar tudo como está”. No caso específico da corrupção, se houvesse um mínimo de dignidade em nossa vida pública, ela seria considerada como crime hediondo e imprescritível, com penas similares às correspondentes a homicídio doloso. Tudo que foi furtado ao patrimônio público ou empregado em benefício de indivíduos ou quadrilhas teria de ser restituído com altos juros. Mas essas formas de coerção talvez jamais se tornem realidade num país de tão brutal diferenciação de classes, em que a casta senhorial legisla em causa própria, aplica as leis e as executa de forma a perpetuar-se como proprietária do Estado.

Lembramos acima a peça Bonitinha mas ordinária, que gira toda em torno de uma frase atribuída por Nelson Rodrigues ao escritor Otto Lara Resende: “O mineiro só é solidário no câncer”, ou seja, somente no limiar da morte o ser humano é capaz de comover-se com o sofrimento alheio a ponto de solidarizar-se com seu infortúnio. Pelo volume e a qualidade da corrupção que nos bombardeia diariamente – e que já se manifesta tranqüilamente nos níveis mais rasteiros –, talvez pudéssemos concluir que o mineiro não é solidário nem no câncer. Mas o canalha, como o próprio Nelson reconhecia, “é sempre um cordial, um ameno, um amorável”. Ninguém é integralmente calhorda. Dizem que Maluf é bom marido, que Fernando Henrique possui respeitabilidade intelectual, que José Dirceu é bom pai, que Collor era um bonitinho com pose de super-herói. Antônio Carlos Magalhães chorou como uma mamma siciliana na morte de seu filho deputado. Essas qualidades, cujas manifestações situam-se no âmbito individual e familiar, recebem alta promoção por parte da grande imprensa reacionária, humanizando os canalhas e aproximando-os da pessoa comum. Daí para sua absolvição moral é um pulinho. E daí para uma assimilação da canalhice como coisa aceitável é quase automático. E os vermes proliferam-se.

12 comentários:

Anônimo disse...

É por isso que esse país está essa porcaria. Esses ladr~es roubam tudo o que podem e o povo ainda os admira. Só vejo esse país piorando cada vez mais. É foda.

Anônimo disse...

É por isso que esse país está essa porcaria. Esses ladr~es roubam tudo o que podem e o povo ainda os admira. Só vejo esse país piorando cada vez mais. É foda.

Anônimo disse...

Muito lúcido, Adriano. Atingimos o máximo da inversão de valores em que esses canalhas são admirados e imitados por todo lado. No Rio de Janeiro então isso é claríssimo. Por isso a cidade está comandada por bandidos e a população está a mercê dos tiros dos funcionários dos grandes mafiosos. Triste país!

Anônimo disse...

Nesse pais comandado por canalhas como vc diz que esperanca podemos ter de viver nossas vidas com dignidade. A saida e' cair fora dessa merda.

Anônimo disse...

Não gostei do seu texto. Parece então que todos nós somos canalhas. eu não sou. Não fale assim do FHC. Mas esse país é realmente cafageste. O mundo vai além dali da esquina. Quem não tiver nenhuma mancha que atire a primeira pedra. Não me diga que vc é um atrabiliário de beira de esquina?

Anônimo disse...

Vai pentear macaco, Adriano!

Anônimo disse...

Vc tem razão. A canalhice está espalhada entre todas as classes e muita gente inveja as oportunidades dos grandes ladrões do Brasil.

Anônimo disse...

A culpa é dessa cultura midiática de Vejas, Caras e Quems que idolatra o mundo dos ricos não importando como eles ganharam suas fortunas.

Anônimo disse...

Só uma bomba atômica de proporção gigantesca poderá resolver a situação dessa merda de país.

Anônimo disse...

Esses ratos de gravata deveriam ser colocados de bruços no chão, com um policial pisando no pescoço deles.

Anônimo disse...

Olha aí o caso Renan Calheiros. O senador evidentemente tem relações promíscuas com a empreiteira Mendes Júnior. E ainda está na presidência do senado e está ocorrendo todo um movimento para inocentá-lo. E quantos por esse Brasil afora não gostariam de ter as oportunidades que ele tem de assaltar o patrimônio público? Realmente esse é um país de vermes.

Anônimo disse...

Muito boa a relação que vc faz entre os canalhas rodrigueanos e a canalha da vida pública nacional.