sexta-feira, 27 de julho de 2007

Personagens da minha infância

Adriano de Paula Rabelo

Minha infância, passada no interior de Minas, foi povoada por algumas figuras muito especiais de loucos, desamparados, cândidos, excêntricos e velhinhos pelos quais mantenho, ao longo da vida, uma fecunda ternura retroativa. Tive sempre um fascínio por esses personagens meio grotescos meio angelicais com quem acho que aprendi a olhar as pessoas para além da casca das roupas, do corpo, das caras, vozes e opiniões com que navegam socialmente.

Lembro-me de Carrico, velhinho de um metro e pouco de altura, com seu chapéu e o eterno cachimbinho, a fala mansa e arrastada de caipira num espaço já urbanizado de cidade pequena em acelerado crescimento. Eu e outros meninos nos reuníamos a sua volta para ouvir histórias de seus encontros com onças pintadas e o Saci-Pererê, toda sorte de contos exagerados e ingênuos envolvendo sua experiência na roça, a familiaridade com o mundo dos bois, cães e pássaros, suas matanças de cobras e teiús. Tudo contado com vivacidade num dialeto que não existe mais. Carrico viveu lentamente, simplesmente, sem ambições. Neste momento em que fecho os olhos diante do computador e rememoro a imagem de seu rosto, a maior evidência da discrição com que esse misto de Jeca Tatu e Pedro Malasartes passou pela vida é o fato de que me esforço para lembrar ao menos o ano em que ele morreu – possivelmente em fins dos anos 1970 – e em que circunstâncias, e não o consigo.

Maria Vilela, por sua vez, era uma vizinha que vivia duas casas acima da de meus pais, numa rua que possuía o poético nome de Passa Tempo. Sua imagem era, sem tirar nem pôr, a de uma bruxa de contos de fadas. Velha e encurvada, o nariz adunco, a cara com fundos vincos e a papada no pescoço, o cabelo desalinhado, a voz rouca, as roupas andrajosas e ensebadas, um péssimo humor. Todos os meninos tinham horror dos folclóricos poderes malignos de Maria Vilela, jamais ousando uma gracinha ou uma fanfarronada quando ela descia a rua de terra onde fomos criados na mais solta liberdade.

Já Nilo da Peroba era uma lenda viva da cidade por seu tamanho monumental. Possivelmente era vítima de alguma disfunção hormonal, pois, em minha lembrança, ele alcançava mais de dois metros de altura, tinha braços muito longos e mãos enormes, uma queixada protuberante e um caminhar desengonçado, sempre de botas sete-léguas, calças curtas e um chapelão na cabeça. Estava sempre em andanças infindáveis pelas ruas.


Gigante judeu em casa com seus pais no Bronx, NY (1970) - Diane Arbus


Boneca era o apelido de uma estranha senhora que sempre passava à porta de casa com seu ruidoso séquito de vira-latas, uns trinta. Baixinha e gordinha, o porte digno, sempre de manhã bem cedo lá vinha ela e seu pelotão de cachorros, que a respeitava militarmente. Quando algum menino mais gaiato gritava-lhe em alto e bom som o apelido, escondido atrás de algum muro, Boneca se irritava e disparava pedras na direção do ofensor. E sua cachorrada disparava a latir. Isso durava uns cinco a dez minutos. Até que todos partiam novamente em sua caminhada de todos os dias.

Ainda no campo dos apelidos insultuosos, me recordo de Geraldo Cagão e Lico Mazzaroppi. Ambos velhinhos cheios de achaques sensacionais que também se ofendiam quando se lhes gritava as alcunhas pelas quais eram conhecidos. Quando algum moleque sem mais o que fazer ou algum bêbado em busca de sensação faziam isso, lá vinham os mais cabeludos palavrões, muitas vezes acompanhados de pedras e ameaças de morte, escandalizando a vizinhança. Geraldo Cagão só encerrava sua torrencial expectoração de impropérios quando ficava exausto e já não tinha mais forças para gritar. Mazzaroppi, cópia do clássico personagem ítalo-caipira do cinema brasileiro, costumava arrancar um canivete e urrar da janela de sua casa: “Vou te capar! Vou te capar, vagabundo!”

Por falar em bêbados – naturalmente evadindo-me da tragédia do alcoolismo, que matou quase todos –, eu poderia relacionar aqui toda uma antologia de paus-d’água fenomenais que estão fixados em minha memória. Dentre eles, dois se destacam: Jorginho e Naná. O primeiro, baixinho de bigodinho fino à Clark Gable, eterna aparência de alguém entre os seus 30 e 40 anos, bochechas vermelhas e inchadas por longos anos de etilismo à base da cachaça mais ordinária, passava sempre em direção ao bar do Jacó, onde se encharcava. Certa ocasião, não me lembro mais por que motivo, Jorginho, com seu bafo crônico, me ofendeu a genitora num final de tarde no campinho de futebol. Para sua infelicidade, a própria vinha chegando para me chamar para tomar banho e jantar, ouvindo o xingamento a ela endereçado. O que então se passou figura ainda hoje no folclore do bairro. Minha mãe tirou o chinelo do pé e partiu para cima de Jorginho, exigindo-lhe que repetisse o que acabara de dizer. Metido em tais apuros, só lhe restou uma saída: dar no pé.


Sem título 6 (1970-71) - Diane Arbus


Naná vivia pelas ruas, sempre de copo em punho, dormindo ao relento, eventualmente acompanhada por algum cachorro, esse animal com inapelável vocação para a santidade. Estava sempre junto a bares e aglomerados públicos de pessoas. Sempre cantando e dançando, às vezes no meio de ruas com muito movimento de veículos, correndo o risco iminente de atropelamento. Mas seu santo e sua resistência são realmente fortes, pois tive notícia de que ainda hoje Naná está em plena forma, bebendo e vagando pelas ruas com seu canto e suas danças, eventualmente com seu cachorro.

Tureba, que já conheci velhinho, foi meu primeiro treinador de futebol. Vivia num quartinho no campo do bairro, abandonado que fora pelos filhos. Com ele, muitas gerações de meninos aprenderam as primeiras noções de jogo, formaram equipes e disputaram campeonatos. Manco de uma perna, sempre com um chapéu de palha na cabeça, era disciplinador mas afável, respeitando e fazendo respeitar os menos dotados para o esporte. Com outros garotos, atravessei uns dez anos sob seu comando nos campos de futebol, aprendendo muito sobre o esporte e sobre a natureza humana. Quando ele morreu, eu já havia deixado a cidade e não pude ir vê-lo. Para mim sua figura se aviva cada vez que piso num campo, ainda que seja para jogar a pelada mais informal.

Outra velhinha que vive em minha memória é D. Alzira, avó de um amigo de colégio e vizinho, que o havia criado. Sempre de lenço na cabeça e descalça, meio desdentada, a voz mansa, o espírito dos mansos, tinha especial carinho e consideração por mim. Lembro-me de que ela também morreu quando eu já me mudara da cidade natal, mas numa temporada em que eu estava de férias em casa de minha mãe. Fui visitá-la uns quatro dias antes da hora final. Um câncer a deixou irreconhecível. Era a própria imagem do sofrimento e da morte. Fui a seu velório simples e despojado. Era como o passamento de um anjo.

Poderia ficar aqui longamente a esboçar perfis destas minhas celebridades. Mas não o farei. Apenas citarei nomes de mais algumas dessas figuras comoventes, que por si sós já dizem tudo: Chuchu, Venerando, Lúcia Muda, Gilberto Garçom, Belchior, Tomba-lobo, Pamonheiro...

Neste momento vêm-me à lembrança alguns trabalhos da fotógrafa americana Diane Arbus, que girava seu país fotografando pessoas consideradas aleijões naquela sociedade tão materialista-competitiva, os chamados freaks. Seu talento com a câmera produziu imagens de perturbadora beleza ao ressaltar a humanidade dessas pessoas que a lei da selva capitalista descartou mas de quem não conseguiu roubar a dignidade. Sobre eles, Arbus disse algo para a eternidade: “a maioria das pessoas passa a vida temendo uma experiência traumática. Os freaks nasceram banhados pelo trauma. Com isso passaram no teste da vida. São aristocratas”.

8 comentários:

Anônimo disse...

Vc me fez lembrar de vários personagens de minha própria infância...

Anônimo disse...

Que cidade, que bairro, que rua não guarda todo um folclore desses tipos aristocráticos a que você se refere? Muito bom.

Anônimo disse...

Adorei o Carrico. Conheci uma pessoa assim na minha infância e também me lembro dele com carinho.

Anônimo disse...

Só intelectual mesmo para gostar tanto de deformações! Seu texto é ridículo...

Anônimo disse...

Diane Arbus tem razão. Essa é a única aristocracia possível num mundo de imensas banalidades e tanto consumismo barato como este. Como vc disse em outro texto, o burguês tem de ser chicoteado sempre.

Anônimo disse...

Por que vc também não se transforma num freek já que gosta tanto deles?

Anônimo disse...

Adriano,o Gilberto Garçom e o Belchior faleceram recetemente, há aproximadamente seis meses o primeiro e 3 meses o segundo.
um abraço, vc se esqueceu do Antonio do Reis (o xuxa) e Gonzaguinha que me disse um dia que a vida dele tava boa demais pq ele tinha dois cobertores e uma lata cheia de comida escondida lá no mercado. Vanderlei Capanema, MG

Anônimo disse...

Que delícia, Adriano, relembrar todos esses "personagens" que também estavam na minha infância, no bairro em que crescemos. Obrigada pelas memórias e pelo carinho que você tem por elas... Elaine - Divinópolis/MG