quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Falar brasileiro, escrever português

Adriano de Paula Rabelo


A certa altura da famosa rapsódia de Mário de Andrade, seu Macunaíma menciona a existência de duas línguas utilizadas paralelamente no país: o brasileiro falado e o português escrito. Lá se vão quase oitenta anos desde a publicação das peripécias do herói sem nenhum caráter, e a distorção apontada por ele permanece intacta como um dos mais graves instrumentos de preconceito e segregação social.

Como no Brasil tudo muda apenas para permanecer como sempre foi, está para entrar em vigor, no início do ano que vem, mais uma reforma ortográfica de nossa língua, a quarta em menos de cem anos. A justificativa desta vez é a unificação da escrita em oito países que falam “português”.

Tramada por diplomatas no âmbito de uma insignificante organização denominada Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, a reforma que nos será impingida desconsidera alguns aspectos fundamentais: falamos uma língua estruturalmente diferente do idioma dos portugueses, mais de 80% dos falantes chamados “lusófonos” vivem no Brasil, nos países africanos e asiáticos que têm o português como língua oficial somente uma diminuta elite realmente o conhece e o emprega, o quinto idioma mais falado no mundo é este utilizado diariamente por cerca de 200 milhões de brasileiros. Nessas circunstâncias, reformar nossa ortografia para ajustá-la à língua de nações extremamente distintas da nossa soa como uma inaceitável capitulação cultural, ainda mais pelo fato de tal reforma servir muito mais a interesses portugueses.

Já no início do século passado, o filólogo e historiador João Ribeiro escrevia estas palavras atualíssimas: “A nossa gramática não pode ser inteiramente a mesma dos portugueses. As diferenciações regionais reclamam estilo e método diversos. A verdade é que, corrigindo-nos, estamos de fato a mutilar idéias e sentimentos que nos são pessoais. Já não é a língua que apuramos, é o nosso espírito que sujeitamos a servilismo inexplicável. Falar diferentemente não é falar errado. A fisionomia dos filhos não é a aberração teratológica da fisionomia paterna. Na linguagem como na natureza, não há igualdades absolutas; não há, pois, expressões diferentes que não correspondam também a idéias ou a sentimentos diferentes. Trocar um vocábulo, uma inflexão nossa por outra de Coimbra é alterar o valor de ambos a preço de uniformidades artificiosas e enganadoras.”

Há alguns anos temos assistido a uma invasão dos meios de comunicação por professores de português apresentando programinhas normativistas em que os usos lingüísticos caracteristicamente brasileiros são vilipendiados. Tais “mestres”, que parecem jamais ter tido aulas de Lingüística em seus cursos de Letras, preconizam como única vertente válida uma língua inexistente, virtual, com muitas doses de arcaísmo, lusismo e beletrismo. O problema é que essa língua por eles preconizada – jamais falada em lugar algum – tem sido um dos mais eficientes instrumentos de separação e distinção de classes no Brasil, um dos principais suportes da manutenção de nosso status quo e sua iniqüidade recorde. Ela é produto de uma ideologia lingüística que desqualifica a cultura popular e os falares de determinadas regiões do país em nome do prestígio de um único modo de viver e de uma única visão de mundo. Daí ouvirmos com freqüência, em geral por parte de quem não tem voz em nossa sociedade, tolices colossais do tipo “Português é muito difícil”, “Não sei português”, “Não entendi o que ele disse, mas como falou bonito!”.


Macunaíma (1982) – Aldemir Martins


Essa reforma ortográfica, como tantas coisas no Brasil, se fará de forma autoritária, elitista e colonizada. Seria interessante se pensar numa reforma ortográfica que nos permitisse escrever como brasileiros, que aproximasse a escrita dos usos efetivos língua brasileira, levando em especial consideração sua sintaxe e sua fonética, rompendo definitivamente com o idioma dos portugueses – que tem uma destinação histórica distinta e sustenta uma cultura muito diversa da nossa.

Outro aspecto nunca mencionado nas políticas lingüísticas é o da qualidade do ensino. Enquanto a escola pública permanecer esse lixo que conhecemos, enquanto seus currículos continuarem teóricos demais, distanciados da realidade do país e alheios à diversidade que caracteriza a sociedade contemporânea, enquanto os professores continuarem ensinando esse “português” virtual, o ensino da língua fracassará.

Esta quarta reforma ortográfica em cerca de noventa anos vem aí para nos infernizar a vida, desatualizar da noite para o dia nosso patrimônio escrito, espalhar ainda mais confusão nesse pindorama onde a comunicação entre as pessoas já vai tão mal.

Dá para se prever que dentro de mais algumas décadas lá virão os burocratas reformar a ortografia mais uma vez. Obviamente o povo mal escolarizado, os adolescentes interneteiros e os jovens criadores de modas lingüísticas continuarão escrevendo fora de qualquer padrão imposto por lei, mas conforme sua intuição de como se fazer entender apropriadamente. E os escritores que verdadeiramente vão além do “instinto de nacionalidade” – para usar os termos clássicos de Machado de Assis –, possuindo “sentimento íntimo” do país e estilo próprio, continuarão transbordando os limites da ortografia do “português”.

9 comentários:

Anônimo disse...

Adorei sua crítica. Após mais de quinhentos anos após a invasão portuguesa, desenvolvemos nossa história por caminhos muito diversos dos de Portugal, especialmente no que tange à lingua. Falamos já outro idioma e por isso nossa ortografia deve se aproximar desse idioma e não do de Portugal.

Anônimo disse...

Tem razão, falamos brasileiro, porque devemos escrever português. Apesar de achar o livro Macunaíma uma doideira, adorei a constatação feita pelo Mário de Andrade.

Anônimo disse...

O que você propõe? Que escrevamos "puder", como diz o Sarney, ou "adevogado", ou "tiuria", ou "vou estar transferindo"?

Anônimo disse...

Admiro a sua coragem de defender abertamente essa posição radicalmente democrática e favorável à nossa afirmação nacional. Quem quer que tenha estudado lingüística sabe que esses professores de português da mídia difundem uma visão distorcida da língua, sem nenhum embasamento científico. Uma discussão sobre a democratização da sociedade brasileira passa necessariamente pela discussão de questões relacionadas à lingua que utilizamos, que, é evidente, já tomou rumos próprios e anda com suas próprias pernas.

Anônimo disse...

Já estamos muito longe de Portugal há muito tempo. Os portugueses nada mais têm a ver conosco. Por que, então, deveríamos manter a mesma ortografia para línguas distintas, como as que falamos? Tem razão: o brasileiro é a quinta língua mais falada do mundo.

Anônimo disse...

O que mais me irrita nesse acordo feito pelos parasitas do Estado - com viagens internacionais, hotéis de luxo, jantares e programas culturais pagos pelo dinheiro público - é ter de jogar fora tudo o que aprendemos com muitos anos de dedicação aos estudos.

Anônimo disse...

Caro Adriano, como esse acordo ortográfico poderia ser diferente num país com a vasta tradição autoritária do Brasil? Aqui do lado mesmo lemos a entrevista do lingüista Luiz Carlos Cagliari dizendo que as reformas têm sido feitas sem conhecimento científico do que é ortografia. Algo que deveria ser liderado por lingüistas e outros profissionais da linguagem, é feito por diplomatas em nome de uma Comunidade de Países de Língua Portuguesa que realmente não tem nenhum lastro no Brasil.

Anônimo disse...

Tenho dúvida sobre se realmente já falamos uma língua estruturalmente diferente da de Portugal. Talvez ainda não, mas estamos caminhando para isso. Do jeito que foi feita, essa reforma é realmente dispensável. Mas vc bate muito pesado na iniciativa.

Anônimo disse...

Concordo inteiramente com você. Essa reforma é ridícula. Falamos brasileiro, por que devemos escrever português? Que se reforme, mas de forma a representar a forma como falamos de fato. Há essa altura da história, não vejo nenhum destino comum entre os países de língua "portuguesa".