sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Ginecófago e misógino

Adriano de Paula Rabelo

Nesta terra de apaixonados e veementes, considero que nossos melhores representantes são os radicais, os que vão ao fundo das coisas ou tocam os extremos da vida. Há vários anos encontrei, na cidade de São Paulo, duas figuras cujas personalidades se localizavam em dois extremos opostos mas talvez curiosamente próximos.

Quando conheci Sérgio e Anselmo, ambos já andavam lá pelos seus quarenta e tantos anos. Todas as tardes de sábado os encontrava nas quadras de futebol de salão da universidade, onde uma turma de uns vinte a trinta jogadores se reunia para o esporte de fim de semana. Enquanto dois times de cinco jogavam, duas ou três outras equipes aguardavam sua vez do lado de fora. Essa espera sempre foi tão fascinante quanto o próprio jogo. Enquanto os de fora ficavam na expectativa de entrar em quadra, a conversa corria solta, ocasião em que vinham à tona as mais esdrúxulas filosofias, as histórias mais pitorescas, o humorismo mais brasileiro. Nessas sessões da tarde, ficamos conhecendo as histórias e o pensamento vivo das duas figuras excepcionais de que tratarei aqui.

Sérgio vivia assombrando a todos com seu recorde excepcional e insuperável: conforme sua contabilidade, já havia ido para a cama com nada menos que 1778 mulheres. Os mais impressionados com esse número astronômico faziam as contas: caso nosso Casanova levasse para a cama uma única mulher por dia, sem repetir nenhuma, levaria quase cinco anos ininterruptos para completar suas 1778 parceiras sexuais. Todo o grupo ficava de queixo caído. Se somássemos os números de todos os quase trinta colegas ali presentes, não chegaríamos nem à metade desse incrível montante. Nem o sublime Pelé, com seus 1281 gols, conseguiu assinalar tantos “tentos” quanto Sérgio.

A reação inicial de todo mundo era de incredulidade. Porém nosso Valmont paulistano afirmou que tinha como comprovar seu recorde. Passados alguns dias, ele nos chega com pilhas de álbuns de fotografias em que registrara suas aventuras ao longo da vida. Sérgio, que durante a juventude tinha boa situação econômica e disponibilidade para as conquistas, dedicou a vida a estar com uma sucessão inconcebível de mulheres de todo tipo durante os anos 60 e 70, quando a aids ainda não existia. A rua Augusta, o parque Ibirapuera, os bares e clubes noturnos foram seu habitat. O apartamento onde morava sozinho foi seu “abatedouro”. Nele, o fauno paulista mantinha sempre uma câmera fotográfica automática num tripé, registrando para a posteridade cada um de seus encontros fortuitos.

Conforme suas explicações para vida que levou, em relação à qual sentia um misto de orgulho e melancolia, em todas essas mulheres Sérgio buscou o Amor, a Beleza, a Sensualidade, a Inteligência, a Paixão, a Pureza, a Compreensão, a Aventura, a Força... Enfim, o absoluto. Como jamais encontrou todos esses atributos numa única mulher, tentou reuni-los juntando os pedaços que encontrava em cada amante isoladamente. Já próximo dos cinqüenta anos, casado e pai de família, nosso Fausto ainda afirmava não haver desistido de conseguir abarcar a totalidade do universo feminino.


Sonho de Sérgio, pesadelo de Anselmo

A outra figura extremada de que aqui me recordo é Anselmo, que dizia detestar as mulheres “não por viadagem, mas por misoginia”. Alto, sério, grisalho e magrelão, no final do segundo ano de faculdade, aos dezenove anos, ele conheceu uma polonesa que viera para uma temporada de pesquisas na universidade. Em pouco mais de um mês eles se encontraram, se apaixonaram, namoraram, casaram-se e partiram para o distante país do leste europeu, ainda nos últimos anos antes da queda do Muro de Berlim. Lá Anselmo viveu cerca de três anos, sofrendo com o frio, a língua absurdamente difícil de aprender e principalmente a degradação dos sonhos e planos do mês em que viveu sua eterna paixão no Brasil. Por fim, tudo acabou da pior forma, com bate-bocas e violências físicas. Um abajur arremessado na cabeça de nosso amigo foi a gota d’água. Bufando sua fúria, ele abandonou tudo e partiu de volta para São Paulo, carregando profunda desilusão e raiva da mulher, ou melhor, de todas as mulheres, às quais estendeu seu desencanto. Apenas nos últimos anos havia se tornado amigo e confidente de uma lésbica, talvez por essa condição lhe dar certa segurança de que os dois jamais se envolveriam.

Tendo feito voto de nunca mais voltar a se relacionar amorosamente com mulher alguma, Anselmo não perdia a chance de exibir seus arroubos misóginos, alardeando aos quatro ventos os males da confiança nas palavras das mulheres, criticando artimanhas femininas e atacando o casamento, instituição que, segundo ele, é uma inequívoca invenção do belo sexo. Para seu horror, parecia-lhe que este mundo está prestes a ser completamente dominado por elas, que estariam muito próximas de assumir o poder e o controle de todos os campos da atividade humana. Por isso, Anselmo clamava pela urgência um movimento “masculinista”.

Essas duas trajetórias incríveis se aproximam pela tentativa de encontrar um ideal de mulher que obviamente não existe. Talvez se possa considerar seus imaginários como duas variantes opostas de um pigmalionismo falhado. Em As metamorfoses, o poeta romano Ovídio conta a história de Pigmalião, rei de Chipre e escultor lendário que se apaixonou por uma estátua de mulher esculpida por ele mesmo, a que deu o nome de Galatéia. Com isso, pediu a Afrodite que lhe desse uma mulher tão perfeita como a sua escultura. A deusa foi além, dando vida à própria estátua. Pigmalião, então, casou-se com sua obra e foi eternamente feliz sob a proteção da deusa do amor e da beleza. Os modelos ideais de vida, no entanto, só se realizam no âmbito das lendas e mitos, que freqüentemente dão forma a pulsões de nossa psicologia profunda.

Sérgio tentou construir sua Galatéia através da busca de incorporação de todas as variantes positivas do feminino, e Anselmo, frustrados precocemente os ideais do amor romântico, descambou para a aversão à mulher, cultivando em seu horizonte uma anti-Galatéia. Entre esses dois extremos, é claro, situa-se a maturidade, que consiste em saber lidar com a frustração e elaborar a perda. A mulher real, ou melhor, o ser humano real, é uma unidade muito complexa de grandeza e miséria, talento e inépcia, clarividência e cegueira. Principalmente, é alguém marcado irremissivelmente pela incompletude e pela finitude. Ainda assim, seus defeitos e qualidades podem compor uma individualidade amável, e no amor duas individualidades podem realizar juntas uma experiência de completude e eternidade. No fundo nossas duas extraordinárias figuras talvez nunca tenham conseguido superar um apego narcísico a si mesmos.

9 comentários:

Anônimo disse...

Totalmente impossível no espaço de uma única vida um homem traçar tantas mulheres como o Sérgio. Isso é lorota, fico indignado!!

Anônimo disse...

Sabe o que Sérgio e Anselmo são? Dois loucos e dois machistas que destestam as mulheres. Ainda assim, há que se reconhecer o talento de Sérgio, quase duas mil mulhres é algo muito impressionante...

Anônimo disse...

Anselmo tem razão, precisamos com urg6encia criar o movimento masculinista As mulheres estão tomando conta de tudo e os homens viraram uns bobos nas garras delas. Temos de nos organizar e sair para as ruas!

Anônimo disse...

Gostei da interpretação da incapacidade de se relacionar com mulheres dos seus dois amigos a partir do mito de Pigmalião. O problema é que o pigmalionismo dos homens está muito mais difundido do que vc imagina. Homem não é fácil não.

Anônimo disse...

Adorei a história do Sérgio. e a do Anselmo também. Tem razão, os veementes são os que melhor representam o brasileiro. Seus textos instruem e fazem rir. Isso é raro hoje em dia. Que continue.

Anônimo disse...

Adorei a história do Sérgio. e a do Anselmo também. Tem razão, os veementes são os que melhor representam o brasileiro. Seus textos instruem e fazem rir. Isso é raro hoje em dia. Que continue.

Anônimo disse...

Preciso tomar umas aulas com o Sérgio. Não estou pegando nada, nem resfriado...

Anônimo disse...

Onde foi parar o romantismo, o cortejamento, a mulher para a vida toda? Que espécie de homem é esta que você aponta como "os nossos melhores representantes"?

Anônimo disse...

Não existem Galatéias, mas este mundo está cheio de Pigmaliões, nas variações mais impensáveis, tais como essas de que você fala. Por isso, há tanto dsencontro entre homem e mulher.