sexta-feira, 13 de abril de 2007

Paraísos imaginários

Adriano de Paula Rabelo

Sempre que o ser humano se sente acossado pela miséria, a opressão, a violência, a falta de perspectivas, inevitavelmente imagina lugares plenos de abundância, liberdade, paz, felicidade, bem-aventurança; realidades em que os problemas humanos estão resolvidos e a vida é gozo perpétuo. A literatura, o cinema, a música, as artes plásticas, os livros sagrados nos oferecem inúmeros exemplos disso.


Os antigos egípcios imaginavam os campos de Aaru, o além onde reinava o deus Osíris, lugar ideal para a caça e pesca, onde os mortos iniciavam a vida eterna após seu julgamento. Aqueles cujas más ações os desqualificavam para o reino de Aaru eram enviados para uma segunda morte.


Por sua vez, os gregos da Antiguidade acreditavam nos Campos Elísios, lugar no mundo subterrâneo onde a sombra dos homens virtuosos repousava após sua morte. Governados por Hades, os Campos Elísios eram constituídos por belas paisagens naturais. Seus habitantes, em alguns casos muito especiais, poderiam receber autorização para retornar ao mundo dos vivos. Em oposição a essa espécie de paraíso, estava o Tártaro, lugar de tormento e sofrimento eternos.


O Jardim do Éden, paraíso descrito nos livros judaicos e na Bíblia, repete os lugares-comuns míticos de inúmeras culturas primitivas, sendo um lugar pleno de amenidades e belezas naturais onde o homem não precisa ganhar a sobrevivência com o suor de seu rosto e onde todos os animais são mansos. Outro lugar-comum do momento primordial de diversas culturas é a perda do paraíso pela iniqüidade humana, muitas vezes desencadeada pela mulher.


Muitas religiões e filosofias espirituais concebem para depois da morte um retorno ao paraíso, em geral para aqueles que praticaram o bem durante a vida. Lugar de eterna bem-aventurança, em alguns casos o paraíso pós-morte é também habitado por almas exemplares, anjos, heróis, deuses e deusas. Em muitos casos, o paraíso é apresentado como compensação para os sofrimentos e as misérias deste mundo.

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Hesíodo, já nos primórdios da literatura grega, em seu poema “Os trabalhos e os dias” imagina o seu lugar ideal não no espaço mas no tempo. Para ele, a humanidade havia atravessado cinco idades: a dos homens de ouro, a dos homens de prata, a dos homens de bronze, a dos Heróis e a dos homens de ferro. Obviamente esta última seria a era contemporânea do poeta, tempo em que os deuses haviam enviado dor, fadiga, confusão e discórdia por causa da soberba humana. Por isso, Hesíodo lamenta não haver nascido antes.




A era de ouro – Lucas Cranach (1472-1553)


Já na Grécia clássica, Platão concebe, em A República, uma cidade-estado fictícia cuja organização social funciona perfeitamente, governada pelos filósofos – aqueles que são preparados para se tornarem os sábios e os melhores –, estando expulsos os poetas, seres que nada produzem de útil.

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A Idade Média, com suas grandes crises de fome, opressão e falta de liberdade, será uma era em que a imaginação de lugares ideais será bastante fértil. O mais famoso deles é o país da Cocanha, lugar de plena abundância de víveres, onde o trabalho era desnecessário para ganhar a vida. Na Cocanha, os rios são de vinho e leite, as colinas de queijo, pedaços de ganso grelhado voam diretamente para a boca das pessoas, leitões transitam já assados e com uma faca espetada no lombo e peixes saltam das águas para as margens dos rios, aos pés dos pescadores. A temperatura é permanentemente amena, o sexo é praticado livremente e sem repressões. Ninguém envelhece nem adoece.

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Ainda da Idade Média vem o conto de fadas “Joãozinho e Mariazinha”, compilado pelos irmãos Grimm. Ao se perderem na floresta, as duas crianças, que pertencem a uma família miserável, seguem um pássaro branco de canto mavioso que os conduz até uma casa feita de pão, com telhado de bolo e janelas de doce. Apanhados pela bruxa que habita a casa, são presos e postos para engordar a base de muitas guloseimas, a fim de serem devorados pela horrenda senhora. Ao final, Joãozinho e Mariazinha conseguem matar a bruxa, lançando-a nas chamas da fogueira que iria assá-los, retornando para casa felizes e bem alimentados.

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País da Cocanha – Pieter Bruegel (1525-1569)
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No início do século XIV, Dante Alighieri reelabora a escatologia da Igreja medieval, colocando no Inferno os que praticaram o mal em vida, no Purgatório aqueles que se arrependeram tardiamente de seus pecados, para que sejam expiados, e no Paraíso os que conquistaram a eterna bem-aventurança através da prática do bem. Guiado por sua amada Beatriz, em sua trajetória celestial Dante encontra Santo Tomás de Aquino e o imperador Justiniano, é interrogado pelos santos sobre suas concepções filosóficas e religiosas. Ao adentrar nos círculos angélicos, que giram em torno de Deus, Dante adquire a capacidade de compreender o mundo espiritual. Por fim, diante da visão da Rosa Mística, separa-se de Beatriz para sentir diretamente a emanação do amor de Deus, aquele que “move o Sol e as outras estrelas”.

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No século XVI, na era das grandes navegações, com a invasão do chamado Novo Mundo pelos europeus e o saque das riquezas das grandes civilizações americanas num tempo em que a riqueza dos estados era medida pelo montante de sua acumulação de ouro, muito se buscou o Eldorado, lugar que os indígenas afirmavam existir em algum ponto perdido do continente. Conforme suas descrições, tratava-se de uma cidade de plena opulência onde as construções seriam todas em ouro maciço, ostentando tesouros em quantidades inimagináveis. “El Dorado” significa, em língua espanhola, “o homem dourado”. Conforme os relatos colhidos pelos colonizadores, tal era quantidade de riquezas no lugar que o imperador local tinha o hábito de rolar sobre ouro em pó, fazendo com que todo o seu corpo adquirisse a cor dourada.


Em 1516, Thomas Morus publicou seu livro Utopia, criando um neologismo com termos gregos que significavam “não-lugar” ou, em outra interpretação, “lugar bom”. Escrevendo num tempo em que a miséria se alastrava na Europa e os conflitos religiosos se acirravam, Morus imagina uma ilha no Novo Mundo onde seriam abolidas a propriedade privada e a intolerância religiosa. As leis eram justas e todas as instituições estavam comprometidas com o bem-estar da coletividade. Mais tarde, a palavra “utopia” se transformaria num substantivo comum, sendo utilizada politicamente de duas formas opostas. Para os donos do poder, os projetos utópicos representam concepções generosas porém irrealizáveis, ilusões, quimeras; para os que lutam por justiça e equilíbrio entre os cidadãos, esse “não-lugar” é o lugar ainda não realizado mas possível que justifica a luta política para mudar o status quo a fim de se alcançar o “lugar bom”.

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Outros utopistas modernos foram Tommaso Campanella, autor de A cidade do sol (1623), e Francis Bacon, autor de A nova Atlântida (1627). Assim como a obra de Morus, esses livros concebem uma organização social em que os homens vivem felizes, tendo todos os problemas materiais básicos resolvidos, mantendo entre si relações pacíficas e fraternais. Tal organização se baseia nos princípios da racionalidade - que fundamentam um Estado regido por princípios matemáticos e científicos que buscam eliminar a imprevisibilidade e proporcionar segurança aos membros da comunidade.


No século XVIII, com a radicalização do racionalismo moderno, diminuíram as grandes idealizações de lugares paradisíacos para onde se evadir das realidades brutais. Ainda assim, o Novo Mundo continuou sendo um lugar que instigava a imaginação européia, constituindo ora uma natureza virgem onde se pode escapar do cansaço civilizatório, ora um lugar de abundância onde para sobreviver basta colher o que essa natureza proporciona gratuitamente e aonde aventureiros podem vir em busca de riqueza rápida, ora um lugar habitado por nativos naturalmente bons, ora uma terra prometida onde se podia recomeçar a vida longe das perseguições sofridas no Velho Mundo.


No decorrer do século XIX, grandes ondas migratórias para o continente americano reatualizaram o mito da terra prometida. Talvez por terem sido os destinatários de variados fluxos de migrantes e terem se realizado como a grande potência político-econômica do século seguinte expliquem em parte a arrogância e o isolamento que têm marcado a história dos Estados Unidos em suas relações internacionais. O mito da terra prometida tem sido inclusive uma justificativa para o seu imperialismo.


Um poeta romântico inglês, Samuel Taylor Coleridge, fará com que, no mesmo século XIX, outro lugar imaginário torne-se célebre: Xanadu. Capital oriental do império chinês no tempo de Kublai Khan, no século XIII, a cidade situava-se no interior da Mongólia. Tendo sido visitada pelo veneziano Marco Polo em 1275, Xanadu tornou-se conhecida no Ocidente após a publicação dos relatos de viagem do grande navegador, que descreve a riqueza de seus palácios e a vida morigerada de seus habitantes, que praticavam as filosofias confucionista e taoísta. Coleridge, em sua imaginação, amplia muito as maravilhas do lugar, pintando um reino de opulência e beleza inigualáveis.


No século XX, a Razão entrou em crise aguda, por não ter conseguido resolver os problemas sociais, políticos, psicológicos e espirituais com que os homens vêm se debatendo há milênios, o que ela havia prometido. Muitas sociedades enfrentaram horrores em escala nunca antes imaginada, toda sorte de infâmia foi praticada contra adversários políticos, países foram arruinados por guerras, catástrofes naturais, vampirismo imperialista. Nesse contexto, surgiram-se outras grandes concepções de lugares imaginários com características paradisíacas. Ao menos um deles se tornou mundialmente famoso: Shangri-La, também situado no Oriente.



Região onde James Hilton situa o paraíso de Shangri-La


Em 1933, o escritor inglês James Hilton publicou o romance Horizonte perdido, em que, baseado na lenda budista de Shambhala, uma cidade desaparecida que tinha a forma de uma flor de lótus de oito pétalas, imagina uma aldeia paradisíaca situada no sopé de uma montanha no Tibete, para onde vai um grupo de pessoas fugindo da guerra. Nessa Utopia oriental, isolada do mundo ocidentalizado, tudo concorre para o bem comum, e a felicidade decorre do cultivo de valores opostos à ganância e ao materialismo da tradição européia. Encontrando paz e sabedoria, os fugitivos dos horrores da guerra conseguem superar o sofrimento, a velhice e a morte nessa espécie de novo Jardim do Éden.

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No âmbito da História, a realização da sociedade comunista, tal como teorizada por Marx, foi a grande utopia de todos os que sonharam com a superação das misérias, dos crimes e das enormes desigualdades inerentes ao sistema capitalista.

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Uma analogia com esses lugares ideais poderia ser feita com a busca pela posse de coisas que proporcionariam amor, felicidade, riqueza ou salvação a um indivíduo ou uma coletividade. A busca dos alquimistas pela pedra filosofal e o elixir da longa vida, a dos cruzados pelo Santo Graal, a de Juan Ponce de León pela Fonte da Juventude, a dos primeiros cientistas modernos pelo moto-contínuo ou a do Capitão Ahab por Moby Dick também podem ser lidas como metáforas para a realização de ideais utópicos e felicidades paradisíacas.

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Já a esperança pelo retorno de redentores e a ação de líderes fortes se dá na perspectiva do resgate de paraísos perdidos ou da instauração de reinos de bem-aventurança. Cristo irá restaurar o paraíso para os bons após o Juízo Final. D. Sebastião irá recuperar o esplendor o império português. D. Quixote se imagina a suma dos ideais cavalheirescos, partindo para o mundo com a missão de libertar os fracos e oprimidos. Antônio Conselheiro funda a sua Canaã no sertão baiano com os desclassificados da então nascente república brasileira. Hitler pretende inaugurar o Terceiro Reich para a glória da raça ariana. E todos os fundadores de religião se imaginam novos cristos a conduzir seu rebanho para a beatitude eterna.

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Retornando aos paraísos imaginários como sítios de infinitas amenidades e riquezas, no âmbito da cultura popular brasileira recente nos lembramos de três momentos representativos, um na poesia e dois na música popular.

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Clássico dos clássicos da poesia brasileira, “Vou-me embora pra Pasárgada”, de Manuel Bandeira, exprime o desejo de evasão de um poeta que durante quase toda a sua vida teve de conviver com as limitações e sofrimentos decorrentes da tuberculose, doença que até algumas décadas atrás matava enorme contingente de pessoas. Bandeira retirou o belo nome de seu paraíso imaginário de uma cidade da antiga Pérsia – hoje Irã – que no tempo de Ciro II foi uma das capitais do império. Em sua Pasárgada, o poeta liberta-se do trabalho e das aflições da existência comum para viver uma sexualidade livre e intensa, praticar atividades lúdicas ao ar livre, ter acesso a confortos da modernidade, aproveitar-se de boas relações com os donos do poder e, principalmente, superar a angústia de uma vida limitada e triste. A propósito, como costuma acontecer com os grandes poetas nacionais, o verso “Vou-me embora pra Pasárgada” acabou por tornar-se um bordão popular, sendo pronunciado sempre que a realidade se mostra por demais insípida e medíocre.

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Já Dorival Caymmi situa seu paraíso num lugarejo próximo a Salvador. No samba “Maracangalha”, escrito a partir da história de um amigo de sua juventude na Bahia, Zezinho, que forjava para a esposa a necessidade de ir fazer negócios na cidadezinha para lá se encontrar com a amante, dizendo “Eu vou pra Maracangalha”, o compositor constrói, com a simplicidade dos grandes artistas, uma canção que também trata da evasão de uma realidade opressora. Fugindo dos excessos e cansaços da civilização, o sujeito do texto afirma sua resolução de partir para Maracangalha usando simplesmente roupas brancas e chapéu de palha, se possível na companhia de Anália, a figura feminina que completará sua felicidade nessa Pasárgada baiana. A aproximação é válida inclusive pelo paralelismo entre o título e o refrão de cada texto.

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Por fim, lembremos um dos sucessos de Roberto e Erasmo Carlos, “Além do horizonte”, em que o sujeito da canção imagina um lugar com todas as características edênicas:

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Lá nesse lugar o amanhecer é lindo

Com flores festejando mais um dia que vem vindo

Onde a gente possa se deitar no campo

Se amar na relva escutando o canto dos pássaros

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No entanto, esse jardim de delícias só adquire sentido com a presença da mulher amada, podendo os dois enamorados restaurar a completude e felicidade do casal primordial antes do pecado original.

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Essa marcante presença dos tópicos paradisíacos nos imaginários erudito e popular atesta a universalidade e atualidade do tema. Indubitavelmente o ser humano necessita do imaginário do paraíso para poder suportar os acidentes da existência, construir sentido para a vida, manter esperanças e agir para a transformação do mundo.

9 comentários:

Anônimo disse...

Que maravilha de texto, Adriano! Fiquei impressionada com sua capacidade de síntese. Todos esses lugares são realmente maravilhosos e necessários para que possamos suportar a vida, ainda mais vivendo no Brasil.

Anônimo disse...

Fantastico adriano! É fascinante a forma como vc transita com liberdade entre o erudito e o popular.

Anônimo disse...

O que e' que vc quis dizer com esse artigo?

Anônimo disse...

Belo artigo. Mais que nunca estamos num tempo que necessita de uma grande idealização como a do País da Cocanha ou da Utopia. Acredito que ela está prestes a surgir.

Anônimo disse...

Sou professora História e de filosofia no ensino médio. Outro dia utilizei numa de minhas aulas o seu belo texto sobre o mito do amor. Vou utilizar também este sobre os paraísos imaginários. Parabéns pela riqueza de temas e a abordagem criativa. Seus enfoques são sempre de um ponto de vista inesperado.

Anônimo disse...

Eu, que vivo entre as balas perdidas do Rio de Janeiro, penso todos os dias num paraíso de abundância, felicidade e, principalmente, segurança como esses de que vc trata.

Anônimo disse...

Num tempo de tanta violência e corrupção neste país vagabundo em que vivemos, um texto como este é uma inutilidade e uma alienação.

Anônimo disse...

Muito lindo e agradável de ler seu artigo assim como os outros q/ vc publicou aqui Parabens!!!!!!!!!

Anônimo disse...

Gostei muito deste ensaio, Adriano. Você atravessou toda a história do ocidente com muita competência para tratar dessa necessidade que temos de imaginar realidades melhores. Isso está longe de ser "inutilidade e alienação". É questionado e revolucionário.