sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Conga, Kichute e Bamba

Adriano de Paula Rabelo


De vez em quando, passeando pelo passado, não resisto a escrever alguma crônica de memória. Não sou saudosista nem tenho qualquer simpatia pela postura nostálgica e retrô. Como tudo, a vida segue para frente. Meu olhar para o passado é simplesmente uma busca por dar sentido ao presente, criticá-lo, elogiá-lo, rir dele, compreendê-lo.

Ontem à noite, coloquei para tocar o disco Clube da Esquina, de Milton Nascimento e Lô Borges, lançado em 1972. Enquanto ouvia as canções desse clássico da MPB, fiquei por algum tempo contemplando a capa, que estampa dois meninos muito parecidos com os cantores – um negro como Milton Nascimento e outro branco, a cara de Lô Borges. Ambos estão sentados num chão de terra batida, numa paisagem interiorana e mesmo rural. Logo atrás se vêem um mato, um grosso tronco de árvore e um fio de arame farpado que atravessa a cena. Os garotos estão sujinhos, vestem roupas meio esfarrapadas e fazem pose de grandes parceiros de travessuras. Um está descalço, e o outro, o negro, traz nos pés um indefectível e surrado Conga azul. Esse calçado é que, como verdadeira madeleine, desencadeou em mim todo um processo proustiano de memória. “Podomemórias”, algum aficcionado de neologismos poderia dizer.

Fui menino interiorano durante os anos 70 do século passado. Recordo-me de que, como para toda a minha geração, três espécies de tênis compuseram a história de meus pés durante a infância: Conga, Kichute e Bamba. Os três eram horrorosos mas baratos e duráveis. Desapareceram no início dos anos 80, com o surgimento dos tênis aeróbicos, mais confortáveis, mais bonitos, com desenhos, cores e formas variadas, acessíveis e multiuso.

O Conga parecia um sapo. Levíssimo, de borracha e lona, ambas finas e pouco resistentes. Havia duas opções: ou todo branco ou azul com sola e ponta branca. Era o mais barato e mais ordinário dos três. Usei-o bastante para passear, ir para a escola, jogar bola.


Capa de Clube da Esquina (1972), de Milton Nascimento e Lô Borges


O Kichute, por sua vez, era todo preto, de lona mais grossa e resistente, sola e bico de borracha, grandes travas quadradas e longos cadarços com os quais se dava um laço logo acima do tornozelo ou uma volta por baixo da sola. Havia quem cortasse os cadarços para pudessem ser amarrados normalmente. E havia quem engraxasse as partes de borracha do calçado, para exibi-lo bem lustroso na escola. Todo fechado, escuro e usado indiscriminadamente, não raro acumulava suor dos pés e passava a exalar um cheirinho pouco convidativo. Duravam muito – um ano e meio a dois anos –, ainda que utilizado dia após dia para o futebol em campinhos de terra.

Já o Bamba era caracterizado como “monobloco”, já que sola, ponta e calcanhar compunham uma única peça de borracha branca, sem travas. O resto também era feito de lona muito resistente. Lembro que havia umas duas ou três variações de cores, mas o mais popular era o Bamba todo branco. Machucava muito no início e levava algum tempo para amaciar. Eram ótimos para o futebol de salão nas aulas de educação física, pois a ponta de borracha era dura e excelente para os chutes fortes de bico. Se não me engano, era do Bamba uma propaganda de televisão em que um carro perdia os freios, e o motorista – calçado de Bamba, claro – freava o veículo com o pé esquerdo no chão, a poucos centímetros de um desfiladeiro!

Quando se chegava na escola com algum desses tênis recém-comprados, usados ali pela primeira vez, quase todos os colegas vinham “estreá-lo”, ou seja, pisavam em cima deles e os sujavam. E ai de quem reclamasse ou se indispusesse contra os que faziam isso. Era derrubado no chão e vítima de um “bolinho”, quando todos os outros garotos saltavam-lhe em cima, formando sobre ele um amontoado humano. Não só o tênis, mas toda roupa lhe ficava suja, além da possibilidade de alguns arranhões e hematomas.

Verdadeiros heróis da resistência, Conga, Kichute e Bamba suportavam até mesmo peladas no pátio de cimento da escola, na hora do recreio, com pedras, tampinhas de garrafa ou um fruto duro e redondo chamado lobeira, que nunca mais vi.

Fui um menino provinciano. Não sei se nas cidades grandes os garotos da minha geração viveram essas mesmas experiências com esses calçados que hoje parecem ter existido não décadas atrás, mas há centenas de anos, tão completamente desaparecidos eles foram.

Os anos correram, vieram a adolescência e a idade adulta. Outros calçados – mais bonitos, mais caros e menos duráveis – fizeram a história de meus pés. Foram-se os calçados, ficaram os pés. Assim como passou a cidade pequena de interior, vieram as metrópoles importantes, outros países, outras experiências, mais complexidade, os pesos da vida... Certa vez, conversando com um amigo paulistano num bar da avenida Paulista, este símbolo brasileiro do cosmopolitismo, disse-lhe que continuo sendo, para sempre, para meu bem e meu mal, apenas um menino do interior de Minas.

16 comentários:

Anônimo disse...

Cara, lendo o seu artigo acabo de fazer uma linda viagem à infância e à adolescência. Tenho 37 anos e como vc, tamb'm sou um apenas um menino do interior de Minas. Vivi tudo isso que você conta. Como foi bom. Isso é que é infância!!!!!!

Anônimo disse...

De vez em quando vc dá para ser superficial e escrever banalidade. Quem tem alguma coisa a ver com seus bambas e quichutes, rapaz! Abra o olho, o país está à beira do abismo! Preocupe-se com coisas mais importantes. Sugiro que escreva alguma coisa contra o Lula por exemplo.

Anônimo disse...

Nasci e cresci em São Paulo e também vivi tudo isso que você conta. Esses calçados fazem parte da memória de toda uma geração. Tem razão: eram horrorosos, mas ótimos. Como tudo passa rápido, meu Deus!

Anônimo disse...

Lembro de ver esse negócio de estrear o tênis novo. Que coisa! Menino com os hormônios no auge é fogo! Homem é meio bobo mesmo.

Anônimo disse...

Saudosos anos 70. 78 foi o melhor ano da minha vida. Clube da Esquina, Toquinho e Vinícius, Bee Gees, Abba, morte do Elvis... Usei muito bamba com camisa de malha estampada e calça jeans. Como tudo voou e parece realmente distante!

Anônimo disse...

Adriano, moro em Florianópolis mas nasci e cresci em Porto Alegre. Não somente nas cidades grandes mas no Sul do Brasil essas experiências que vc conta foram vividas. Isso nos dá uma idéia de que realmente temos uma unidade nacional até nas brincadeiras de infância, esse é o grande milagre do Brasil.

Anônimo disse...

Lembro desses calçados (rs) Eu mesma tive alguns congas e bambas. Quando olho fotos antigas não acredito que usava aquilo, eles eram feios demais.

Anônimo disse...

Não acho que isso é boa lembrança, também passei por isso de pobreza e essas brincadeiras de mau gosto na escola. E esses tenis eram muito feios e ruins. Há mal gosto pra tudo.

Anônimo disse...

Pelada na rua ou em campinho de terra e poeira com Kichute, bola dentinho de leite e traves feitas com pedras... nada melhor!

Anônimo disse...

Deu até pra sentir as travas do Kichute sob a sola dos pés! Que saudade de dar um carrinho de kchute de levantar poeira -- dominar a grande área!

Anônimo disse...

Quando eu era menina eu usava um conguinha vermelho para ir para a escola, e o uniforme também era um vestidinho vermelho e branco. Que moda, heim! Mas era muito bom...

Anônimo disse...

Caro Adriano,
invado seu blog para tomar uma carona em seu texto. Realmente os calçados são madeleines que cantam nossa infância. Havia neles uma identificação que queríamos a qualquer custo e tudo estava em seu devido lugar quando tínhamos um par deles em nosso pés. Só não concordo que eram feios. Não acredito que tivessemos algum padrão de beleza que seguisse os moldes atuais nem que consigamos pensar com esses padrões sobre aquilo que tanto amávamos, que nada mais era do que os caminhos para onde e por onde aqueles calçados nos levavam. Mais do que uma identificação, aquilo tudo era uma vontade enorme de pertencer e de poder ir. O mesmo desejo que nos move até hoje. Lembro-me que, calçando um deles, poderíamos desbravar o mato ou formar os campeonatos de futebol na rua com a bola mais surrada que houvesse e com as "traves" feitas de tijolos ou coms os balaústres das cercas velhas que não funcionavam mais. Nada daquilo era feio, tudo nos completava; e podíamos sonhar de noite com o beijo da garota mais bonita da rua ou da escola (esse sim um misterioso padrão de beleza que nos assombra até hoje). A capa do disco que você pôs para ilustrar o texto já foi também objeto de minhas lembranças, pois conheci as músicas do Clube da Esquina ainda adolescente e adulto comprei alguns discos do Milton daquela fase. Sempre me lembrei, ao ver esse disco (o que eu tinha dei de presente a um escritor Sardo do qual traduzi um livro como mostra da boa música que há em nossa terra) de um amigo de infância. Eu o garoto branco e ele o garoto negro. Mas que para nós e para mim (dele infelizmente não tive mais notícias), até hoje, não nos identificávamos assim, pela cor da pele. Éramos o Ivan e o Valdemir que jogavam bola nos campinhos de grama ou de terra perto da casa da minha avó calçando um kichute ou um conga. Isso era bonito e é até hoje: a paz que sentíamos da infância ainda tem sua beleza.
Ainda na foto do disco, há para mim outra madeleine: o pão que o menino descalço come. Quantas batatas-doces em não "roubei" das tigelas da minha avó depois de um "dia de trabalho" nos campinhos ao redor de sua casa? Quantos bolinhos de chuva ela não me fez quando havia sol com chuva e não poderíamos ir brincar lá fora? E ele sempre tinha uma conversa pra nos fazer esquecer aquela impossibilidade...Quantas vezes não saíamos com um pedaço de pão com manteiga para chamar os amigos ou nos encontrar para jogar bola às três da tarde...Tenho a sensação que a vida ainda corre em minhas veias, mas poder lembrar dessas coisas é o que faz me sentir vivo, embora seja verdade que para alguns adultos de hoje é melhor esquecer do passado. Aliás, este é quase sempre bom se não o cpmaprarmos com o presente. Podemos esquecer o que de ruim se passou e é bom lembrar do que foi bom; basta esqucer o presente. Talvez seja possível nos sentir como naqueles tempos em que um carrinho na sala à noite fazia a festa ou a escola fosse o universo que se abria para nós ou o calçado mais barato era a maís cara identificação com a liberdade.
Por tudo isso, Adriano, não só você é um menino do interior de Minas. Todos nós somos. "Meninos do interior de Minas" de Pirapora, Dourados, Piracicaba, Bauru etc.
E sempre com um sorriso nos rosto.

Anônimo disse...

Cara amei o que escreveu sobre os kichutes, bambas e congas eu nasci em 1977 e usei as congas e bambas mas ainda tenho uma inveja mortal de quem usou os kichutes. hoje resolvi entrar na net para procurar se ainda ha algum em algum lugar remoto vendendo esses sapatos e me deparei com o seu site parei e me deu uma vontade de chorar lwembrando da minha infancia no interiopr do RJ dividida com o interior de MG, onde eu corria pelos campos atras dos meus tios que eram poucos mais velhos do que eu, porém muito mais espertos do que eu. você me fez lembrar de coisas adormecidas mas que muito lindas de minha infancia como por exemplo qndo meus tios amarravam o cadaço do kichute dando varias voltas em torno do tornozelo e eu com uma conga não tinha cadaço para isso e minha mãe falava que eu era menina e não podia me vestir como eles. vivia flustrada mas hoje ainda não entendo por que eu não podia usa um kichut e peço encarecidamente que quen souber onde encontra_lo por favor me diga eu calço 37 e o quero ter um para me sentir forte como os meus tios, rsrsrs... o que eu quero mesmo é sentir um pouco mais o gosto da minha infância!!!

Anônimo disse...

Kika, moro em Aracaju-SE e aqui tem Kichute de montão.

Manda email pra belloq@infonet.com.br ok?

Bjs
Cristiano

cacau disse...

Tenho um filho de 9 anos e não há tênis que resista. Comentei que na minha infância usávamos o kichute para aguentar as brincadeiras na rua sem asfalto. Decidi procurar na net pra mostrar a foto pro meu filho quando me deparei com seu artigo. Fiz uma viagem pela minha infância no interior do Pr, onde a criançada se reunia até a noitinha pra jogar peladas, andar de carrinho de rolimã, jogar bets, brincar de pique latinha e etc.
E como eu acampanhava meus irmãos nas brincadeiras quis porque quis um kichute, me sentia super poderosa amarrando o cadarço dando volta pra apostar corridas com os garotos. Que tempinho bom...

marciodeilton disse...

vendo todas essas estorias e viajando
no tempo min lembro que bamba é conga
aqui em janaúba norte de minas já fizerão parte de uniforme escolar e o kichute se eu não tiver enganado o
Pelé era quem fazia á sua propaganda
nesta época quem tinha kichute eram
os craques do time menos eu ficava o dia quase todo com ele más nunca fui craque de bola más hoje eu procuro o bamba se alguém souber onde encontrar me de um alô= marciodeilton@bol.com.br