quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

O malandro ambivalente

Adriano de Paula Rabelo


O malandro é uma personalidade originária da ordem escravista que tem atravessado séculos e demonstrado excepcional capacidade de adaptação aos novos contextos históricos e sociais no Brasil. Sua forma primitiva é a figura do agregado, sujeito livre mas pobre que vivia à sombra dos grandes senhores. Sem exercer uma função econômica na sociedade, já que não possuía propriedade nem trabalhava, pois quase todos os serviços eram executados por escravos, o agregado vivia de favor na casa ou nas terras de um senhor de quem dependia e a quem devia absoluta gratidão. Óbvio que, nessas circunstâncias, o agregado desenvolveu marcantes especificidades no seu modo de ser e de agir. Seu universo era fortemente marcado pelo paternalismo, o apadrinhamento, o personalismo e a informalidade.

No ensaio “Dialética da malandragem”, Antonio Candido interpreta o romance Memórias de um sargento de milícias como uma excelente representação do malandro brasileiro em seu nascedouro. Na obra de Manuel Antônio de Almeida, que o crítico considera o primeiro romance tipicamente nacional, o protagonista Leonardo Pataca transita o tempo todo entre a norma e infração, entre um modelo idealizado de comportamento condizente com os princípios do Estado e da sociedade modernos e os desvios geralmente relacionados às organizações arcaicas.

Já num estudo publicado em 1979, o antropólogo Roberto DaMatta identifica três figuras paradigmáticas na sociedade brasileira, cada uma delas associada a um acontecimento comunitário específico. A primeira delas é o “caxias”, personalidade autoritária que concebe o mundo através da rigidez das hierarquias, das leis e da burocracia. O acontecimento com o qual se identifica em profundidade é o desfile militar. A segunda figura paradigmática é o “renunciador”, aquele que se desapega dos bens materiais e dos prazeres do corpo em nome da fé, seja religiosa, seja política, seja ideológica. Associa-se muito proximamente às procissões. E, por fim, a terceira dessas figuras é o malandro, ser essencialmente marcado pela flexibilização e pela inversão, opondo-se tanto à rigidez das normas e hierarquias como ao ascetismo da fé. Socialmente deslocado, portanto, o malandro não se enquadra na ordem estabelecida, mas também não pretende contestá-la e subvertê-la. Associa-se diretamente ao Carnaval. Para DaMatta, em geral assumimos, em diferentes ocasiões da vida, a persona de uma ou outra dessas figuras.

Nossa formação histórica, com classes sociais radicalmente cindidas não apenas dos pontos de vista econômico e cultural mas também em relação aos direitos e deveres, criou uma distância imensa entre os ricos, que se posicionam acima das leis e possuem a prerrogativa de poder transgredi-las e cometer toda sorte de abusos, e os pobres, que para sobreviverem muitas vezes são obrigados a lançar mão de expedientes para burlar a burocracia e as leis feitas para mantê-los à margem dos princípios democráticos e cidadãos. Daí a controvérsia em torno de certas criações do nosso processo histórico, tais como o “você sabe com quem está falando?” e o chamado jeitinho brasileiro, duas expressões da malandragem que sempre tiveram enorme espaço em nosso jogo social.


Elenco da peça Ópera do malandro, de Chico Buarque, montagem de 2003


O malandro, portanto, é aquele que, posicionado em qualquer lugar na escala social, desvia-se da lei e da regra sem contestar o status quo. Figura ambígua, fruto de uma estrutura formada por privilegiados e desfavorecidos, de um sistema que não conseguiu generalizar o trabalho assalariado e os direitos civis, ele provoca, em geral, um misto de simpatia e revolta. No âmbito popular, o malandro valida seus pequenos golpes como necessários para a sobrevivência ou como uma vingança contra as condições a que está submetido. Se não há emprego nem meios para se ganhar a vida pela via da honestidade, a única alternativa é viver de expedientes, muitas vezes compondo o front dos exércitos montados pelos grandes traficantes, contrabandistas e exploradores da pirataria, do jogo, do latrocínio. Afinal todos estão reduzidos a consumidores, tendo de cavar a qualquer custo o meio para se poder adquirir as mercadorias que uma publicidade avassaladora vive garantindo serem absolutamente necessárias para se alcançar automaticamente a felicidade. Instaurada a filosofia do “salve-se quem puder”, portanto, o capital parece haver conseguido sobrepujar as utopias e as reivindicações coletivistas. Por outro lado, não deixa de provocar uma admiração positiva a astúcia do malandro para sobreviver na adversidade e mesmo para gozar luxos e prazeres à custa de seu necessário complemento, a figura do otário, muitas vezes alguém pertencente à casta privilegiada.

Já no âmbito dos abutres da política e dos grandes negócios, o malandro nem precisa justificar a ilegalidade, cônscio que está de sua invulnerabilidade. Afinal é para o bem de suas mansões, de sua cidadania mundial, de seus carrões importados, de suas lindas amantes e de seus relógios Rolex que continuamos a trabalhar, a pagar impostos e a manter a fé em que “dias melhores virão”. Aqui os otários somos todos os que cumprem honestamente com seus deveres e sustentam um Estado que não oferece retorno de nossas contribuições na forma de boa qualidade de vida. Também esse “malandro federal”, tal como o classifica Chico Buarque numa peça de meados da década de 1970, gera reações ambivalentes. Por um lado é execrado como larápio dos meios para a promoção do bem público; por outro, tendo em vista os padrões hoje consagrados para aferir o êxito pessoal de alguém, são admirados por sua acumulação de capital, por viverem luxuosamente e por sua proeminência nas colunas sociais.

Para nosso bem e nosso mal, esse personagem paradigmático de nossa formação histórico-social há de permanecer ainda por muito tempo, reatualizado todos os dias, em todos os lugares. Somente a construção de um Estado muito mais eficiente que esta farsa que temos, com um mínimo de igualdade de oportunidades para todos - sem nossas disparidades sociais gritantes -, o império das leis, uma educação qualificada e amplamente disseminada, além do espaço para a valorização do mérito individual, o malandro um dia poderá se tornar obsoleto. Mas tudo indica que ele ainda atravessará os próximos séculos, sempre se renovando para se adaptar às novas leis, aos novos costumes, às novas tecnologias.

8 comentários:

Anônimo disse...

Gosto dessa forma de ver os problemas por seus diversos lados. O malandro decorre de nossa incapacidade de estruturar um Estado condigno, mas também representa a forma de muita gente, especialmente os pobres, "navegarem socialmente". E ele traduz em grande parte o ser brasileiro.

Anônimo disse...

O malandkro é o Brasil, sórdido e sublime, vulgar e excepcional, canalha e simpático... Inexplicavel.

Anônimo disse...

Faltou a sua posição. Você, por acaso, também se considera malandro?

Anônimo disse...

O Renan é um malandro, o Fernando Henrique é um malandro, o Lula é um malandro, o Serra é um malandro, o Aécio é um malandro... O que existe de ambivalente nessa quadrilha que governa o Brasil? São todos uns calhordas!

Anônimo disse...

O Brasil malandro é, ao mesmo tempo, o do futebol-arte e o da corrupção deslavada, de nossa excepcinal música popular e de nossa incapacidade de construir uma cidadania ampla para todos. Dessa maneira, o Brasil malandro é realmente ambivalente.

Anônimo disse...

E onde é que o Brasil vai parar com essa filosofia da malandragem que vc não condena, às vezes parece defender?

Anônimo disse...

A malandragem dá o tom da identidade e da alegria brasileira. A manemolência do brasileiro foi formada nos terreiros, nas gafieiras, nas favelas. Isso é o que nos define e de vez em quando produz um Aleijadinho ou um Garrincha, como você escreveu há algumas semanas.

Anônimo disse...

Malandragem é escrever tanta bobagem em defesa do malandro.