sexta-feira, 16 de março de 2007

O mito do amor

Adriano de Paula Rabelo


Mesmo nesta era de encantamentos às vezes gratuitos com a tecnologia – ou apesar dela –, o mito permanece mais que nunca como algo que explica e dá sentido à vida. Para se ter uma idéia disso, basta verificar como os relatos de passagens de nossas experiências pessoais estão carregados de nossa mitologia familiar, temporal, regional ou nacional. Os mitos partem dos sinais apresentados pela realidade e pela experiência humana, iluminando mistérios e apaziguando-nos diante do inexplicável.


“Vênus e Cupido”, de Alessandro Allori (1535-1607), o amor como exaltação do humano

A propósito, gostaria de tratar de um dos mitos mais instigantes da tradição ocidental: o do surgimento do amor, tal como narrado pelo comediógrafo Aristófanes no diálogo O banquete, de Platão. Conta-se que houve, em tempos imemoriais, uma época de ouro em que os seres humanos eram esféricos, completos e perfeitos, possuindo grande força e inteligência. Havia então três gêneros: o masculino, o feminino e o andrógino.


A auto-suficiência acabou fazendo com que os humanos desenvolvessem uma enorme presunção. Assim, voltaram-se contra os deuses e resolveram escalar o Olimpo, para atacá-los. A punição de Zeus à desmedida dos homens foi imediata e exemplar: eles foram cortados em dois, separados e misturados entre si, tornando-se mais fracos e passando a andar eretos sobre duas pernas. Apolo foi encarregado de virar-lhes o rosto e lhes esticar a pele sobre o ventre. Apenas uma abertura na região frontal do corpo foi deixada – o umbigo –, para que os homens se lembrem para sempre do ocorrido.


A partir de então, cada um de nós passou a manifestar uma forte sensação de incompletude e uma ânsia por encontrar a sua metade perdida no vasto rebanho humano. As metades daquele que fora um duplo masculino agora se procuram, tal como as metades daquela que fora um duplo feminino, a fim de retomarem a unidade e a antiga plenitude. Por sua vez, a parte masculina daquele que fora um andrógino, ser uno bi-sexuado, tem por destino ir em busca de sua parte feminina e vice-versa. Após a punição de Zeus, os seres humanos somente reencontram a totalidade perdida através do amor. E a razão do amor é justamente o sentimento de falta, de imperfeição, de insuficiência.


Conforme o mito grego, os seres humanos podem vir a sofrer um castigo ainda mais terrível, caso reincidam na falta de moderação e de reverência aos deuses: serão novamente cortados em dois, talhados na linha do nariz, passando a andar de perfil, com uma só perna. Neste caso os humanos ficarão reduzidos a metades de metades, padecendo de uma falta imensa e insolúvel. Se isso ocorrer, confusão será tal que serão incapazes de amar.


Inegavelmente esse mito é uma realidade psicológica. A incompletude e a busca pelo outro são talvez a marca maior da condição humana. Em nossa travessia pela vida, no entanto, quantos desencontros, quantos enganos, quanta miragem! Numa peça de Shakespeare – Sonho de uma noite de verão – uma linda mulher se apaixona por um burro, por artes mágicas de um duende da floresta. Quantos de nós, em algum momento da vida, já não se apaixonou por esse burro metafórico? Quantos persistem longamente na ilusão de haver encontrado sua metade e a completude perdida até que advém o momento da desilusão?


Raros parecem encontrar definitivamente a sua metade neste mundo louco. Ou muitos de nós talvez a encontrem durante um determinado período de entusiasmo e paixão. De fato a confusão parece reinar ainda mais nesta época em que todas as amarras da religião e da moralidade patriarcal se romperam. Isso não quer dizer que a aventura amorosa se tornou menos fascinante e intensa; ou menos incômoda, pois, como diz meu amigo Doc, “amar é um saco”.


“O beijo”, de Klimt (1862-1918), a unidade e a plenitude amorosa

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Os amores que parecem marcar e permanecer são aqueles que não se realizaram. A morte de Romeu e Julieta cortou cedo demais toda uma longa história promissora de sublimes venturas. Na realidade, sabemos todos que se tivessem sobrevivido e se casado teriam se aborrecido um com o outro inúmeras vezes. Dante tornou-se poeta após ter encontrado Beatriz numa rua de Florença, colocando-a, mais tarde, no paraíso celestial. Se houvesse abandonado a esposa e os filhos para se unir a ela, é possível que a tivesse colocado posteriormente no mínimo no purgatório, após uma longa vida de tropeços conjugais. D. Quixote cultivou de forma delirante um amor cortês pela inexistente Dulcinéia del Toboso. Se tivesse mantido a lucidez, pode ser que tivesse consciência de que fantasiara sobre uma rústica e feia camponesa. Riobaldo amou Diadorim por toda uma existência de aventuras e violências nos sertões de Minas, acreditando que ela fosse um homem. Somente após a morte da amada, ele descobriu que ela era mulher. Todo um mundo de possíveis bem-aventuranças ficou perdido no passado. Os grandes amores parecem ser os que duram pouco tempo de convivência, sendo interrompidos em seu auge pelos desastres da vida.


A imperfeição a que fomos reduzidos com o corte de Zeus talvez seja pesada demais para ser suportada indefinidamente pelo outro, que é aquele que a vida nos trouxe, não a nossa metade para sempre perdida. No entanto, assim como somos permanentemente desafiados a sermos bons num mundo mal, a sermos éticos em meio a tanta desonestidade ao redor, somos desafiados, na relação de amor, a aceitar a imperfeição do amado, a reconhecer suas boas características e a criar junto com ele/ela algo que seja capaz de nos encantar.


Lembro-me de um amigo apaixonado em processo de conquista que certa vez enviou para a amada um bilhete que dizia simplesmente o seguinte: “Você é um cântaro produzido com um delicado e fino cristal, cujo conteúdo é de raríssima essência, de perfume que inebria, seduz e conquista.” Claro que com tais palavras ele conquistaria até mesmo uma Vênus de mármore. Com sua flor dos céus, ele viveu feliz para sempre durante uns cinco ou seis anos. Os dois retomaram a perfeição e a força do andrógino. Mas a eternidade não tem nenhum compromisso com nossa finitude, nossas metamorfoses e nossos diversos eus. As imperfeições de ambos, imperceptíveis de início, foram tomando vulto. Os caminhos de cada um foram tomando direções distintas. Vieram os maus humores, as implicâncias e impaciências, a falta de comunicação. O andrógino novamente se desfazia...


Assim é a vida. Isso não invalida o amor. Apenas nos ensina a não encará-lo por um prisma romanticamente ingênuo. Ainda mais em tempos como os nossos, em que o desencontro tem sido tamanho que muitos parecem já ter sido punidos por Zeus uma segunda vez.

20 comentários:

Anônimo disse...

Gênio!

Anônimo disse...

Adriano - vc conseguiu a façanha de falar mal até mesmo do amor. Vc é um chato de galocha.

Anônimo disse...

Muito bom Adriano. O mito de Platão é lindo e sua reflexão muito bonita. Só não ficou claro se você é otimista ou pessimista em relação ao amor.

Anônimo disse...

Vai escrever bem assim no raio que o parta!!!!!!!!!!

Anônimo disse...

SEus textos tem estilo e profundidade. Sempre apredemos muito com as informações que vc da e com as reflexoes que faz

Anônimo disse...

Gênio também já é demais, né, gente!

Anônimo disse...

Lindo texto, lindo autor!

Anônimo disse...

Adriano, belíssimo o mito platônico do qual vc parte para realizar uma instigante reflexão, sem receita, fórmulas prontas e romantismos convencionais.
Explorando um tema já tão batido, vc o enfoca por novos ângulos.
O fato de uma colega ter dito que não sabe se vc é pessimista ou otimista em relação ao amor é uma prova da riqueza e da complexidade do seu texto.

Anônimo disse...

Um texto de quem simplesmente conhece muito do assunto.

Unknown disse...

OI ADRIANO, MUITO INTERESSANTES TODOS OS TEUS ARTICULOS, O DE RELIGIAO E POLÍTICA E ESTE SOB O AMOR EM TODOS OS TEMPOS. UM ABRAÇO!!! TCHAUUUUU!!!!

Unknown disse...

oi, adriano. Muito interessante todos os artigos especialmente o de política e religiao, e tambem o mito sobre o amor nos tempos modernos!!!! O amor e a velocidade da vida moderna sao compativeis?? beijo!!! Monica, a amiga uruguaya!!

Unknown disse...

Mas acho mais interessante que tu expunhas temas mais sob debate, e mais transgresores como a critica á religiao!!!!!! mónica leiros

Anônimo disse...

Neste artigo vc é lírico, intenso, sutil e profundo. Prefiro este estilo em relação ao dos outros artigos que vc publicou aqui.

Anônimo disse...

Lindo, lindo, lindo, lindo, lindo o seu texto. Merece moldura. Vou enviá-lo por e-mail a vários amigos.

Anônimo disse...

muito legal

Carpe Diem disse...

Realmente, somos dotados desta sensação de imcopletude, e estamos sempre querendo encontrar no outro o que possa nos preencher. Mas será que cabe ao outro esta tarefa? Existimos porque o outro existe, pois dele dependemos desde a mais tenra idade, e é através da relação com o outro que damos start às nossas potencialidades. Mas poque esperamos que o outro venha a preencher o que nos falta, se a falta é nossa e não do outro? Será que não é porisso que há tantos desencontros? Será mesmo que temos uma outra metade a juntar quando não deveríamos sim buscar apenas acrescentar?
As relações começam com um simples flerte, paixões fulgazes... mas, será que amor não seria mesmo quando conseguimos enxegar o outro tal qual ele é, regado de seus encantamentos, transbordando suas imperfeições?
Nós, seres humanos, atualmente, vivemos muito para o imediatismo, para soluções rápidas e de preferência sem dor. Esquecemos que, às vezes, só aprendemos através dela, da dor e da ausência.
Claro, ninquém quer sofrer, quem não gostaria de poder nascer já com seu par perfeito e viver feliz para sempre. Então, porque isso não acontece?
Aquilo chamado de amor marcante, e como você mesmo completa adiante, é uma falsa idéia!!. Realmente, só marcou porque não viveu de fato uma relação, ficou muito mais no imaginário.
Vivemos em meio aos desencontros sim, quantos ou quantas por este mundão estão à procura de alguém para acordar todas as manhãs juntinho de seu amado (a), servir-lhe café na cama, filosofar a dois, e, até mesmo assistir uma partida de futebol da qual ele é a personagem principal, torcer por ele mesmo ele não sendo um Garrincha ou Pelé!!!
É, assim é a vida! Temos com certeza que encarar o amor por outro prisma. è um exercício diário.
Um beijo,

Isis Vitoria disse...

Olá meu nome é Isis, vc escreveu muito bem mas esse mito não é o do amor esse é o mito do sexo.O mito do Amor foi escrito por Platão, segundo Socrates, o mito do amor conta como o Amor nasceu, durante uma festa que comemorava o nascimento de Afrodite.

Anônimo disse...

Oi!
Para mim, o amor é o encontro entre duas pessoas inteiras, que seguem viagem juntas, curtindo a companhia um do outro e caprichando na gentileza e respeito mútuo! Amar é esperar o tempo do outro, garantindo a ele que está ali, pronto e de braços abertos para recebê-lo quando ele desejar estar perto de corpo e alma!
Um beijo...
Marina
:)

Marisa da Mata, Niterói, RJ disse...

Adorei a frase do Doc: "O amor é um saco!" Demais.

André Narciso disse...

Pois é,eu adoro esse mito,mostra que o amor existe para qualquer pessoa. Seja elá homo/hetero sexual...