sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Na trilha da mulher fatal

_______________ Adriano de Paula Rabelo


Faz parte dos mitos de quase todas as civilizações alguma figura de mulher sedutora que leva o homem a perder uma situação paradisíaca ou ao menos de harmonia e felicidade. Também no âmbito da história, impressiona a recorrência e a permanência dessa persona, que adquiriu foros de verdadeiro ícone da cultura ocidental. Com o tempo consagrou-se, mesmo em outros idiomas, a referência através da forma francesa da expressão: femme fatale.

A literatura da Antiguidade apresenta exemplos marcantes de mulheres fatais. De imediato podemos lembrar duas delas entre os gregos, uma originária da épica e outra da tragédia: Helena e Medéia, dois perfis muito distintos. A primeira, esposa do chefe militar grego Menelau, famosa por sua beleza incomparável, foi raptada (ou melhor, deixou-se raptar) pelo troiano Páris, provocando uma guerra de dez anos que resultou em sérias perdas entre os gregos e na completa destruição de Tróia. Determinadas versões da continuação do mito dão conta de que posteriormente Helena e Menelau se reconciliaram.

Medéia, por sua vez, é traída por Jasão, que por ambição resolve abandoná-la para se casar com Creúza, filha de Creonte e princesa de Corinto, a fim de herdar o poder. Transbordando ódio, ela utiliza seus poderes mágicos para destruir tanto o ex-marido quanto Creonte, o rei arrogante que desejava expulsá-la da cidade-estado. Mata a princesa com um belo presente enfeitiçado e assassina seus dois filhos com Jasão. Indiretamente, deixa os dois homens que abominava numa espécie de morte em vida ao eliminar aqueles a quem mais amavam.

A mitologia dos gregos antigos é muito rica em mulheres fatais. As sereias, que entre eles eram metade mulher e metade pássaro, tornaram-se legendárias por enfeitiçar os homens com seu canto, fazendo com que os navegantes que passavam pelas imediações da ilha que habitavam se lançarem ao mar em direção a elas, morrendo afogados.

Na Orestéia, famosa trilogia de Ésquilo, após assassinar a própria mãe adúltera e seu amante, Orestes é acossado pelas erínias (“fúrias” entre os romanos), terríveis divindades femininas encarregadas de punir os crimes de sangue contra membros da própria família. Personificações da vingança, elas eram três: Tisífone (Castigo), Megera (Rancor) e Alecto (Interminável). Possuíam asas de morcego e cabelos de serpentes, e de seus olhos escorria sangue. Eram tão pavorosas que a tradição da tragédia grega registra que, durante as representações das peças de Ésquilo, seu aparecimento em cena fazia com que mulheres grávidas que assistiam ao espetáculo dessem à luz na platéia, em pleno teatro. Os homens em especial entravam em pânico à simples menção delas. Por sua marginalidade e necessidade de reconhecimento, acabaram aceitando aplacar sua sede de vingança sob os argumentos persuasivos da deusa Atena, transformando-se em “eumênides” ou “benfazejas” após o julgamento e absolvição de Orestes.


O remorso de Orestes (1862) – William-Adolphe Bouguereau

Já uma tradição greco-romana de origem oriental fala nas harpias, palavra que significa “arrebatadoras”. Nas primeiras versões do mito, eram representadas como seres sedutores, também meio mulher, meio pássaro. Posteriormente passaram a ser interpretadas como horríveis monstros alados que possuíam um rosto de mulher com feições horrorosas, além de garras afiadas e retorcidas. Raptavam os corpos dos mortos, sobretudo jovens, para usufruir de seu amor. Eram esculpidas e pintadas nos cemitérios, como se estivessem a espera de algum morto. Uma maldição fez com que o rei Fineu, da Trácia, fosse atormentado por esses monstros: faminto, iguarias eram colocadas na sua frente, mas elas eram arrebatadas pelas harpias, que inutilizavam com seus excrementos o que não conseguiam carregar. Também eram três: Aelo (Borrasca), Ocípite (Rápida no Vôo) e Celeno (Obscura).

Na tradição judaico-cristã, a mulher fatal também aparece em diversas variações. Os livros sagrados já se iniciam com a perda do paraíso e a queda da humanidade pela ação de Eva, que, sucumbindo à tentação da serpente, introduz o pecado e a morte no mundo. Tentando Adão, por meio de sua beleza e de seus dotes sexuais, a comer do fruto proibido, ela foi diretamente responsável pela queda do companheiro. E Deus pune a transgressão do casal primordial, condenando a mulher à dor durante os trabalhos de parto, bem como à submissão ao homem. Este, por sua vez, é sentenciado a ter de trabalhar penosamente para garantir o sustento da família.

Uma lenda judaica conta que Adão teria tido outra esposa antes de Eva. Se esta foi criada a partir da costela do primeiro homem, o que por si já significa subordinação a ele, Lilith foi feita com barro, tal como o companheiro, sendo, portanto, uma igual. Independente de Adão, Lilith o teria abandonado por incompatibilidade sexual, já que ele sempre praticava o sexo no papel de dominador, e ela não admitia a condição de submissão. Após sua partida, os anjos de Deus saem a sua procura, encontrando-a fazendo sexo com um demônio numa elevação junto ao Mar Vermelho.

Ainda no Antigo Testamento, outra figura encarna perfeitamente o arquétipo da mulher tentadora e destruidora. Trata-se de Dalila, que seduz o poderoso Sansão a ponto de fazê-lo revelar que o segredo de sua força extraordinária residia nos longos cabelos que ele cultivava. Assim, enquanto Sansão dormia, ela corta-lhe as madeixas, extinguindo-lhe o poder e fazendo com que ele caia em mãos inimigas.

Já no plano da história, a nobre egípcia Cleópatra é talvez a personalidade que melhor representa a mulher fatal, por reunir, em grande medida, ambição, poder de encantamento e capacidade de jogar com os favores sexuais. Aos 17 anos casou-se com o próprio irmão, Ptolomeu XII, herdeiro do trono. Mais tarde liderou uma rebelião contra ele, com o auxílio do imperador romano Júlio César. Após novo casamento com outro de seus irmãos, ela se envolveu com o próprio César, que a levou para Roma como sua esposa. No centro do império, Júlio César acabou sendo assassinado, o que provocou o retorno de Cleópatra ao Egito, onde se envolveu com outro imperador romano, Marco Antônio, de quem também se tornou esposa, readquirindo poder e influência. Com o tempo, as mudanças dos ventos políticos fizeram com que o casal se suicidasse para não cair nas mãos de seus inimigos.

O início do século XX, no contexto da Primeira Guerra Mundial, veria surgir outro ícone da mulher fatal: Mata Hari. A dançarina holandesa de traços exóticos que arrebatou a Europa, executando maneirismos de danças sagradas do Oriente, seduziu alguns dos homens mais poderosos da Belle Époque, envolvendo-se com chefes militares dos dois lados do conflito que iria explodir em 1914. Acusada de espionagem, Mata Hari foi executada na França por um pelotão de fuzilamento durante o último ano da guerra.

Desde seu início, o cinema irá explorar bastante o fascínio da femme fatale. Nas telas ela é quase sempre uma personagem ambígua que transita constantemente entre o bem e o mal. Seduz e atormenta o herói, bem como outros homens que se colocam no seu caminho, simultaneamente oferecendo-se e negando-se, o que os leva se tornarem obcecados e incapazes ações racionais, perdendo o controle de suas próprias vidas.

A primeira atriz a fazer fama como “devoradora de homens” foi Theda Bara (1885-1955). Com ela surgiu o termo “vamp”, um sinônimo que também faria história. Os títulos dos filmes protagonizados por Bara já dão uma idéia clara do tipo de personagem que ela encarnava com maestria: Escravo de uma paixão (1915), Pecado (1915), Coração de tigre (1917), Quando a mulher peca (1918), Mulher libertina (1924), Madame Mistério (1925).

Marlene Dietrich, em Anjo Azul (1930), interpreta a cantora Lola Lola, grande atração do cabaré homônimo do filme. No enredo, um severo professor descobre que seus alunos estavam freqüentando a casa, considerada por ele como um antro de perdição. Para puni-los, vai até o local a fim de surpreendê-los, mas acaba envolvido ele mesmo pela sensualidade da cantora, que, pouco a pouco, arruína-lhe a vida.

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Anjo Azul (1930), filme de Josef von Sternberg

Nos anos 1940, a voga do chamado filme noir aconteceu no contexto da liberação feminina durante os anos da Segunda Guerra Mundial. Em seus enredos policiais com diferentes graus de suspense, envolvendo espionagem, assassinatos misteriosos, sociedades secretas, há quase sempre uma figura de mulher extremamente sensual, dúbia e freqüentemente cruel que por algum tempo controla o protagonista masculino e suga-lhe as energias. Em geral ela rejeita a vida conjugal à maneira burguesa e entrega-se a uma vida de completa independência. Freqüentemente aparece bebendo e fumando como um índice de sua natureza indomável. Alguns filmes noirs, os mais moralistas, costumam terminar com a morte violenta da mulher fatal, punindo-a pelas transgressões das normas sociais e restabelecendo a boa ordem burguesa.

Nas últimas décadas, o cinema comercial americano andou reatualizando o mito em personagens como Alex Forrest, de Atração fatal (1987), e Catherine Tramell, de Instinto selvagem (1992).

A cultura brasileira também apresenta interessantes figurações da mulher fatal. Muito especialmente nossas lendas e mitos retratam-na de variadas formas. Para ficar em apenas dois casos, um amazônico e outro nordestino, pode-se lembrar da Iara e da Alamoa. A Mãe d’Água é uma versão fluvial das sereias. Lindíssima figura feminina – meio mulher, meio peixe –, de vez em quando abandona as águas profundas para vir à tona e cantar belas canções nupciais em língua indígena. Os homens que a ouvem, ainda que não entendam o que ela diz, são vítimas de incontrolável encantamento, atirando-se nos rios profundos e morrendo afogados.

Já a Alamoa – palavra que é uma corruptela de “Alemoa” ou “Alemã” – faz parte da tradição da ilha de Fernando de Noronha e do litoral de Pernambuco, onde em realidade viveram holandeses no século XVII. Conta-se que nas noites de temporal, por volta da meia-noite, costuma aparecer nas praias uma bela figura de mulher, alta e loira, de olhos claros, dançando completamente nua na areia. Quando os homens atraídos por ela se aproximam, a Alamoa se transforma num monstro horrível e desaparece com eles, que nunca mais são vistos.

No candomblé, a entidade denominada Pomba-gira, companheira de Exu, é a protetora dos cassinos, dos prostíbulos e das mulheres, sendo uma personificação da sedução, da vaidade e do amor. Muito sensual, encanta os homens facilmente e resolve os mais intrincados problemas amorosos, envolvendo-se na vida das pessoas. É bastante generosa com quem a agrada e a respeita, mas se mostra extremamente vingativa com aqueles que a desafiam.

Na literatura brasileira, Machado de Assis talvez seja quem nos tenha legado a mais bem acabada personificação da mulher fatal: Capitu. Ao menos na forma como nos é apresentada por seu viúvo Bentinho, ela reúne todas qualidades do mito, em especial por causa de seus “olhos de ressaca”, “de cigana oblíqua e dissimulada”. Após sua morte, deixa o marido atormentado por dúvidas e suposições de que ela o teria traído com o melhor amigo.

Hoje a femme fatale segue marcando presença nas artes. Porém se verifica que ela tem ocupado bastante espaço no jogo social contemporâneo. Todos os dias ela pode ser vista na publicidade, na moda, nas revistas femininas e também nas masculinas, no fait divers dos jornais diários, na política. Muitas de suas características foram encampadas por um certo perfil de “mulher moderna” que vem se consagrando após os movimentos feministas dos anos 1960, recebendo enorme promoção por parte dos meios de comunicação, assim como da indústria e do comércio, que muito freqüentemente associam-na a suas mercadorias. O que é problemático nessa identificação, no entanto, é que a mulher fatal tem se realizado, para usar uma expressão cara aos moderninhos, apenas como uma atitude ready-made, uma fantasia pronta para se vestir. Daí as “ousadias” de encomenda, a independência vivenciada como egoísmo e competição com o companheiro, a postura varonil a imitar os piores equívocos masculinos. A mulher fatal, como se viu, é uma rara persona, vigorosa e sempre original em suas variações, capaz de sacudir meio perversamente toda a sociedade em seu entorno e de, por isso, fazer face às mais graves conseqüências. Ao ser transformada numa pose, numa receita de comportamento ao alcance de todas, o que se vê são figuras de um bonitinho padronizado e vazio, solitárias incapazes de estabelecer vínculos e muito menos de disseminar as paixões e tragédias que resultavam da grandeza esmagadora das grandes femmes fatales do mito e da história.

6 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom o texto sobre o histórico da persona da mulher fatal, mas não gostei do final

Anônimo disse...

Excelente artigo, que mostra como a mulhr fatal foi se definindo através do mito e da história, até chegar aos nossos dias, quando, como tudo, também ela virou uma mercadoria.

Anônimo disse...

Querome perder nos braços de uma mulher fatal como a sharon stone no Instinto selvagem... Que mulher!

Anônimo disse...

Você parece ter fascínio por esse tipo de mulher. Vai ver qeu já foi vítima de alguma ou alguma já te levou às nuvens.

Anônimo disse...

Adorei a crítica final às fantasias de mulher fatal que a publicidade impõe hoje em dia. Realmente trata-se de uma simples pose sem conteúdo e sem grandeza. Já não se fazem mais Cleópatras e Mata Haris como antigamente.

Anônimo disse...

Gostei de saber que no Brasil temos também uma rica tradição de mulheres fatais, seja na literatura, seja no folclore. Muito enriquecedor o seu texto.