sexta-feira, 23 de novembro de 2007

O brasileiro torto

Adriano de Paula Rabelo


Durante boa parte do século XIX, ridículas teorias racialistas originárias dos centros do imperialismo europeu e macaqueadas no Brasil por nossa esbranquiçada casta dominante pregaram a inferioridade das raças originadas fora da Europa ocidental, em especial do negro e do amarelo. Pior ainda era considerada a mestiçassem, que, segundo essas teorias construídas sem nenhum aporte científico, degradava os indivíduos, tornando-os instáveis, obtusos e propensos à violência dos instintos sem controle. Em 1888, Nina Rodrigues, por exemplo, intelectual de grande prestígio pertencente à Escola de Medicina da Bahia, lamentava a seguinte “fatalidade” de nossa formação histórica: “Todo brasileiro é mestiço, quando não no sangue, nas idéias.”

Somente nas primeiras décadas do século XX, com os avanços dos estudos sociais, ocorrerá uma reavaliação do papel da mestiçagem na formação do povo, da sociedade e da cultura brasileira. O ápice desse movimento será a publicação de Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre, em 1933. Nesse clássico da interpretação do Brasil, o sociólogo pernambucano mostra como os portugueses que vieram para o Novo Mundo, mais avançados tecnologicamente, conseguiram submeter o índio e o negro sem deixar de com eles misturar geneticamente desde os primeiros tempos de sua chegada, no século XVI, quando deram início à formação de uma sociedade fortemente marcada pela figura do patriarca. Na seqüência do que comporia uma extensa trilogia, Freyre mostra, em Sobrados e mocambos, a decadência do patriciado rural e o desenvolvimento urbano; e, em Ordem e progresso, a desintegração da sociedade patriarcal e o advento do trabalho livre, o esgotamento do Império e as condições que propiciaram o advento da República. Em grande medida, essa evolução histórica teria se processado, conforme o sociólogo, em virtude da ação do mulato, esse mestiço paradigmático na cultura brasileira, que a partir de então foi revalorizado.

Desde as primeiras manifestações nativistas, nossa especificidade vem se construindo por oposição a uma Europa muitas vezes idealizada em seu racionalismo, classicismo, cosmopolitismo, “pureza” e “superioridade”. Assim nos caracterizaríamos por ser imaginativos, barrocos, antropofágicos, malemolentes, tortos... Talvez esta última qualidade resuma e signifique em profundidade toda uma mitologia com a qual nos identificamos. Muita da nossa mestiçagem de sangue e de idéias, agora reafirmada como positividade, se exprime através de um verdadeiro arquétipo que se construiu em torno do brasileiro torto. Vejamos.

Nosso maior poeta já inicia sua trajetória na literatura com o significativo presságio de um “anjo torto” que, por ocasião de seu nascimento (dele, o poeta), instiga-o para que parta em direção à vida, anunciando que ele será um gauche (esquerdo, desajustado, mal adaptado, desordenado). E assim – como um “gauche no tempo”, na definição de um dos melhores intérpretes de sua obra – Drummond atravessará o século XX construindo uma das expressões fundamentais da cultura brasileira.

Já na era colonial, o brasileiro retorcido se fazia presente. Não por acaso o Barroco proporcionará a primeira manifestação original da arte brasileira. E, na arte barroca, a figura que encarna o gênio nacional por excelência durante os tempos da Colônia é a do mulato Antônio Francisco Lisboa, filho de mãe negra escrava com um arquiteto português, formado como síntese preciosa de culturas diversas. Na idade madura, o surgimento de uma lepra, que lhe corroeu os dedos e as mãos, fez com que o agora chamado Aleijadinho se dedicasse com toda a sua potencialidade humana a sua atividade como escultor, produzindo obras-primas com ferramentas amarradas a seu corpo mutilado.

Outra figura que pode ser vista como gênio torto é o nosso maior escritor, Machado de Assis, filho de pai negro e mãe branca de origem portuguesa; ele pintor de paredes, ela costureira. Pobre, epilético e mulato numa sociedade senhorial e escravista, reunindo várias características de alguém que só poderia se realizar como um pária no Brasil do século XIX, Machado se transformou na expressão mais universal da literatura brasileira, criticando a sociedade de seu tempo com fina e superior ironia, expondo a conduta artificial, insensível e egoísta de nossa casta dominante.

Em Sobrados e mocambos, Gilberto Freyre, ao tratar da ascensão do bacharel e do mulato na sociedade brasileira, registra como o aumento da civilização veio acompanhado por uma onda de sifilização. Assim, nas últimas décadas do século XIX e primeiras do XX, para o sociólogo, foi se urdindo o mito do “amarelinho”, segundo o qual o protótipo do herói brasileiro seria o tipo pequenino, magro, feio, disgênico, “quase um menino, vestido de homem”. Nessa categoria se ajustam perfeitamente três das maiores glórias nacionais: Santos Dumont, Rui Barbosa e Euclides da Cunha, ícones de nossa quintessência impura. Curioso como esse mito do amarelinho se faz presente também no imaginário popular, através de personagens depauperados mas de uma astúcia genial como João Grilo, Pedro Malasartes e Manoel Riachão, ou mesmo na mitificação em torno de figuras históricas como Lampião e o padre Cícero. Por contraste, cultivamos certa aversão pelo herói bonitão, encorpado e eugênico, que praticamente não tem vez em nosso panteão.

Ainda no âmbito do imaginário popular, figuras lendárias como o Saci-Pererê, negrinho mutilado de uma perna; o Curupira, anão de traços indígenas e pés virados para trás; e Macunaíma, o “herói sem nenhum caráter”, são vigorosas figurações de uma psicologia coletiva que extrapola longamente os racionalismos estreitos.

Mas é talvez do futebol que nos vem a confirmação de que o brasileiro anda direito pelos caminhos mais tortos. Para ficar em apenas uns poucos exemplos – um de cada grande etapa da história do esporte no Brasil –, restrinjamo-nos a três personagens extraordinários.


Pernas de Garrincha, foto tirada em 1964


O primeiro é Arthur Friedenreich, o primeiro craque excepcional surgido nos gramados do país. Filho de pai alemão e mãe negra brasileira, esse mulato sui generis, maior goleador da história do futebol, fez com que, nos anos 1910, época em que o esporte era apanágio de uma elite branca e racista, o país se olhasse e se reconhecesse no espelho. Sobre ele, diz Mário Filho: “A popularidade de Friedenreich se devia, talvez, mais ao fato de ele ser mulato, embora não quisesse ser mulato, do que de ele ter marcado o gol da vitória dos brasileiros [na final do Campeonato Sul-Americano de 1919, primeira grande conquista da Seleção Brasileira]. O povo descobrindo, de repente, que o futebol devia ser de todas as cores, futebol sem classes, tudo misturado, bem brasileiro.”

Se Pelé foi o maior futebolista de todos os tempos, Garrincha foi seguramente o maior fenômeno da história do esporte. Se o sublime crioulo era perfeitamente talhado para se tornar o “atleta do século”, o inexplicável mestiço de índio, negro e branco reunia deficiências que não o qualificavam sequer como peladeiro de rua: pernas tortas, uma bem mais curta que outra, bacia deslocada, baixinho e tendente a gordinho. No entanto, com seu único drible para a direita arrasou defesas compostas pelos mais eugênicos latagões. Freqüentemente deixava estatelados cinco ou seis apolos que tentavam tirar-lhe a bola. Sobre ele e sobre nós, dizia Nelson Rodrigues: “Feliz do povo que pode esfregar um Garrincha na cara do mundo!”

Por fim, Romário, flor da periferia carioca. Baixinho, irresponsável, desbocado, rebelde, indisciplinado, campeão da solércia e da provocação, dentro de campo foi um mago da pequena área, com seus gols de biquinhos e toques sutis em espaços ínfimos de campo preenchidos por zagueiros gigantescos. Praticamente sozinho ganhou a Copa do Mundo de 1994, rodeado por uma das mais sofríveis Seleções Brasileiras do século XX. Fora de campo, nunca se deixou engambelar pela cartolagem mafiosa nem pela imprensa corrupta que são parte do lado podre do futebol. Ao contrário, colocou-os no bolso, fazendo sempre o que desejava e, principalmente, passando-lhes o conto-do-vigário dos mil gols, em que até os tentos assinalados em peladas na praia entraram em suas contas…

Esse mostruário de heróis nacionais parece exprimir em boa medida nossa identidade e nossa psicologia. Os brasileiros sem dúvida preferem a astúcia à força bruta como instrumento de ação política e social. As figuras mais admiradas do nosso panteão são aquelas que transformam seus defeitos ou supostas desvantagens em qualidades especiais, que utilizam muito mais a malícia, a habilidade e a sagacidade do que a arrogância, os punhos e a violência. Quando deixarmos de imitar os centros do ultra-racionalismo e da rapinagem, assumindo nossa sinuosidade essencial, avançaremos como Aleijadinho sobre a pedra, como Garrincha sobre joões: – e enfim nos tornaremos o que somos.

9 comentários:

Anônimo disse...

Adriano, me liga: 0-XX-21-9145-3255, gostaria de conversar com você. Ou me da seu telefone.

Anônimo disse...

Excelente Adriano,
Ninguém melhor que você sabe que nos debateremos na lama enquanto assumirmos nossa tortuosidade. Lembro uma frase do Nelson Rodrigues em que ele dizia que "o Brasil é o único lugar onde as feias são bonitas". Um país assim é o paraíso. Não fossem os ACMs e FHCs, esses flagelos e esses karmas que carregamos, já estaríamos no topo do mundo a muito tempo

Anônimo disse...

Errata: onde se lê: "enquanto assumirmos nossa tortuosidade", leia-se: "enquanto NÃO assumirmos nossa tortuosidade".

Ivan Neves Marques Jr. disse...

Lucidez.

Anônimo disse...

Só me faltava essa - elogiar assim os defeitos do brasileiro como se fossem qualidades! Vc está por fora, cara! Por isso que nunca chegaremos a ser como os países sérios do mundo!

Anônimo disse...

Somos tortos, mestiços sim (quando não no sangue, completamente mestiços na cultura e no sentimento). Gosto de sua forma de encarar o Brasil. Continue escrevendo sobre ele e sobre nós.

Anônimo disse...

O final do seu texto, falando da nossa pouca valorização de nosso "andar certo por caminhos tortos" se liga ao complexo de vira-latas de Nelson Rodrigues, de que você fala num outro artigo. Concordo com você. É ridícula a nossa extrema valorização dos centros da rapinagem e a nossa negligência para com os nossos valores próprios. É a herança colonial e a postura das mentes colonizadas. Mas isso é muito típico da nossa elite, imitada nos maiores centros urbanos. Viajei ao Nordeste no ano passado. Isso é bem menor lá.

Anônimo disse...

Torto, barroco, que tira suas forças de sua fragilidade... Demais!

Anônimo disse...

Bárbaro!