sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Sociedade das aparências

Adriano de Paula Rabelo


No conto “Teoria do medalhão”, Machado de Assis nos apresenta um pai que, após um jantar de comemoração da entrada do filho na maioridade, dá-lhe conselhos sobre como navegar de maneira eficiente em nossa sociedade, a fim de que seu rebento se realize como um medalhão, figura que ele considera a própria encarnação do êxito entre nós. O experiente senhor ensina que, para escapar à obscuridade, o candidato a ser bem sucedido socialmente deve assumir por inteiro aquilo que lhe corresponde na expectativa do vulgo, sufocando qualquer laivo de originalidade e idéias próprias, pois toda a sua ação consiste em manejar com habilidade o vasto acervo de lugares-comuns e convenções fartamente disponíveis e facilmente reconhecíveis entre a massa dos homens. Assim, apenas quando ancorado num realismo pragmático o medalhão poderá trafegar bem por entre a mediocridade geral. Isso é obtido através de sua adesão incondicional à ideologia dominante. Mestre do manejo das aparências, o medalhão não hesitará em lançar mão de frases feitas e fórmulas consagradas, não perdendo nenhuma oportunidade de fazer publicidade dos menores de seus atos. Mesmo o seu riso é codificado: não poderá jamais se aproximar da ironia, que é uma expressão de melancolia e questionamento, mas deve resultar da chalaça, da piada que o faz rebentar numa gargalhada a pregas soltas e que não questiona absolutamente nada. O medalhão mais bem acabado seria aquele que mantém, em seu mais alto grau, a “chateza do bom-tom” e uma “invejável vulgaridade”. O pai arremata sua lição comparando-a com O príncipe de Maquiavel.

De fato, “medalhionismo” pode ser considerado como um maquiavelismo para a vida privada e para a eficiência da navegação social mais rasteira. Tal como o grande pensador florentino, o pai do conto enxerga a humanidade como ela é, e não como gostaríamos que fosse.

Com a genial ironia que lhe é peculiar, Machado sempre põe a nu a melancólica condição do grosso da humanidade. No conto, o alvo mais direto de sua exposição é o bacharelismo exacerbado da elite de sua época, com seu anelo por ascensão social, sua obsessão por cargos e sua voracidade por honrarias e títulos. No entanto, o criador de Brás Cubas transcende em muito o seu tempo, apresentando-nos um fenômeno universal mas que talvez nunca tenha estado tão em evidência como atualmente: a identidade individual determinada por imagens e mitos criados no confronto com a alteridade.


O fundo das aparências para o mercado


Mais que nunca a sociabilidade se processa por meio de aparências e simulacros. Uma simples olhadela numa página qualquer de alguma revista dessas dedicadas ao estilo de vida de nossa high society exporá toda a miséria existencial das celebridades e novos-ricos atualmente em evidência. Mas para além desses panfletos dos grandes medalhões contemporâneos, no âmbito da gente chamada “comum”, percebe-se que também há muitas pessoas empenhando todas as suas forças para fugirem da obscuridade e se fazerem vistas de qualquer maneira. E o caminho para o êxito continua sendo o da vida como um manejo competente de aparências em que não se propõe nenhuma transformação do status quo, mas uma adequação individualista a ele com o fim de se colher dividendos pessoais. Nada mais reacionário que essa filosofia da imagem bonitinha para o mercado das trocas simbólicas que, em última instância, é uma imagem para o mercado tout court, já que hoje em dia tudo se mede por sua “vendabilidade”. Aí estão os reality shows como zoológicos humanos onde cada bicho se esforça pela simpatia do público com o espalhafato da estupidez. Aí está a política como um campeonato de marketing que se sobrepõe ao franco debate dos problemas da sociedade. Aí estão as mocinhas para quem o auge de suas carreiras consiste em posarem nuas para revistas masculinas de grande tiragem. Aí estão os jornalistas capangas do pensamento único, os advogados sofistas, os publicitários do eu, os hipócritas do politicamente correto, os gastadores de gente e as empresas-fornalhas dos recursos naturais... Todos eles exibicionistas de sua boa imagem.

Sem dúvida assistimos ao triunfo da razão cínica, fundamentada na sobreposição do interesse próprio ao coletivo, no narcisismo mais infantil e no descompromisso ético. A superficialidade das relações pessoais e o esgarçamento da vida pública são a decorrência óbvia da prevalência dos comportamentos fundamentados no individualismo e nas aparências. Ou recriamos um novo sentido de coletividade e cidadania – naturalmente inclusivo e emancipador –, ou a visão fatalista dos medalhões nos levará ao colapso e à barbárie. Todos os sinais disso já estão por aí, evidentes, para quem quer ver.

9 comentários:

Anônimo disse...

Esse conto do Machado é simplesmente sensacional e realmente muito atual. Gostei da análise e das associações com as coisas de hoje em dia.

Anônimo disse...

Tem razão, hoje em dia parecer e ter são os verbos da moda, ninguém pensa em SER. A televisão irresponsável e' em grande parte a responsável por esse vazio.

Anônimo disse...

Não tem como não concordar com vc. Essa sociedade de aparências é um lixo. Como vc conclui, a barbárie da violência está aí, e todos nós somos vítimas e responsáveis por ela.

Anônimo disse...

Ótimo texto. Esse conto de Machado é um retrato do Brasil de hoje.

Anônimo disse...

Você ataca a sociedade das aparencias mas cria este blog para aparecer: Muito estranho, muito contradição e incoerência.

Anônimo disse...

Veja só as celebridades otárias que são modelos humanos hoje em dia! Vejas os Bushs e Aécios da vida! Veja os Fautões e Silvios santos! Estamos na idade das trevas!

Anônimo disse...

Muito necessário esse texto agora que começou lixo de quinta categoria do Big Brother Brasil.

Anônimo disse...

Adriano, muito boa sua análise.
Vanderlei Capanema, Divinópolis-MG.

Anônimo disse...

É verdade! As pessoas sentem uma necessidade inesgotável de aparecer. Tenho um orkut para manter contato e trocar fotos com amigos que vivem longe de mim. Mas no meio dessa gigantesca comunidade está cheio de perfis de menininhas que fazem biquinho para as fotos, buscando a popularidade em um meio que não lhes acrescentará nada. As pessoas tornaram-se fúteis, deixaram de acreditar no conteúdo, a sociedade tornou-se espelho de uma geração burra, que acredita que a beleza física é a única coisa que realmente importa. O que não está "à mostra" não tem mais valor. O crescimento intelectual é virtude de poucos. É, sem dúvidas, uma virtude, não é um privilégio!