sexta-feira, 17 de agosto de 2007

O vira-latismo nacional

Adriano de Paula Rabelo


Em suas crônicas de futebol, Nelson Rodrigues discutia obsessivamente aspectos relacionados ao caráter nacional. O escritor identificava em nossos jogadores e também no brasileiro em geral um sentimento de inferioridade e uma postura de humildade em relação ao estrangeiro, em especial àquele proveniente do chamado Primeiro Mundo, e mais especialmente ainda ao anglo-saxão. A esse fenômeno, qualificado como abjeto, o cronista dava o nome de “complexo de vira-latas”, definindo o brasileiro como um “Narciso às avessas, que cospe na própria imagem”.

Nisso, como em tantas outras coisas, Nelson foi lúcido e profético. A reverência pelo estrangeiro, acompanhada pela autodepreciação, tem persistido como uma doença crônica de nossa psicologia coletiva.

No senso comum, por exemplo, é muito freqüente que se diga, quando algo dá errado ou do qual não se gosta, que tal coisa é possível “só no Brasil mesmo”. Como se fôssemos depositários de tudo de ruim que há no mundo, estivéssemos condenados irrevogavelmente ao fracasso como nação e o idealizado exterior fosse uma espécie de País da Cocanha.

Credita-se do jornalista Márcio Moreira Alves uma frase que é um primor de vira-latismo: “Tudo o que existe só no Brasil e não é jabuticaba é ruim”.

Henfil, em seu excelente Diário de um cucaracha, conta o seguinte (triste) episódio ocorrido numa reunião de emigrados brasileiros de que participou nos Estados Unidos: “E aí, brasileiro é muito animado, alguém bem de leve, assim meio envergonhado, tira da bolsa uma maquininha fotográfica daquelas que não precisa fazer nada. É só apertar e pronto. ‘Detesto botões.’ Quanto custou? Baratíssimo! Onde? Rua 46. E outro diz que tem uma igual, mas que comprou (orgulho) foi na Macy’s, bem mais caro. Acha ele, sem se importar com a indelicadeza, que estas butiques brasileiras vendem barato porque tá tudo com defeito de fábrica. Por isso, arremata seguro: só compro na Macy’s ou na Blumendalles (sei lá cumé que escreve isto)!”

Se se der uma corrida de olhos numa série de filmes nacionais lançados recentemente, lá estará nossa humildade exibicionista diante do personagem anglo-saxão, que é sempre um raisonneur, alguém que pondera sobre a esculhambação e a incompetência desfilam diante dos seus olhos. Para se comprovar isso, assista-se Carlota Joaquina: Princesa do Brazil (1995), de Carla Camurati, Jenipapo (1995), de Monique Gardenberg, Como nascem os anjos (1996), de Murilo Salles, O que é isso, companheiro (1997), de Bruno Barreto, Orfeu (1999), de Cacá Diegues, Bossa nova (2000), de Bruno Barreto...

Interessante o alvoroço que se faz quando alguma das grandes agências noticiosas ou algum dos periódicos mais bem sucedidos comercialmente dos Estados Unidos ou da Europa noticia alguma coisa sobre o Brasil, quase sempre algum dos nossos horrores sociais ou alguma catástrofe. O terem dado a notícia é notícia aqui!!! Sair alguma coisa no New York Times, então, é a glória suprema, a chancela máxima do indefectível mundo anglo-saxão.


Um dos nossos maiores críticos sociais, inimigo do “complexo de vira-latas”


Retornando ao futebol e a Nelson Rodrigues, o anjo pornográfico deve estar se revirando no túmulo. Há alguns meses, por três times da Inglaterra terem chegado às semifinais da Liga dos Campeões da Europa, nosso jornalismo esportivo, em sua quase unanimidade, passou a exaltar o famigerado futebol inglês – com seus chutões, suas correrias desabaladas e seus carrinhos – como o melhor do mundo. Babou-se muito elogio vira-lata ao jogo coletivo, à velocidade, ao preparo físico, à organização tática dos ingleses. Ao mesmo tempo, criticou-se o baixo nível técnico do Campeonato Brasileiro deste ano, o nivelamento dos times etc., etc. Parece que havíamos retornado ao tempo das crônicas de Nelson, com todos os ingredientes da abjeção que motivou seus textos. Para usar uma imagem cara ao grande escritor, até um paralelepípedo reconhece a superioridade ululante do futebol brasileiro sobre o europeu. Menos os “entendidos” em futebol.

Curioso como é muito comum ouvir de estrangeiros que imigraram para o Brasil, mesmo dos impolutos anglo-saxões, a opinião de que se sentem privilegiados por viver aqui. Curiosíssimo como a crônica esportiva européia não se cansa de exaltar permanentemente o futebol brasileiro, que obviamente nada mais precisa provar a ninguém.

Quem já viveu em qualquer país do exterior e possui um mínimo de capacidade de observação e análise, sempre retorna com uma visão mais equilibrada das coisas. Enfrentamos problemas gravíssimos, muitos deles ainda relacionados às questões mais básicas dos direitos da cidadania. Nossa sociedade civil é, de fato, bastante frágil. Muitas de nossas instituições funcionam precariamente. Nossa casta dominante segue cada vez mais desabusada. Porém, temos uma cultura original que nada fica a dever às do mundo imperialista, possuímos densidade histórica, uma identidade e valores próprios. Por isso, é de uma indignidade absoluta a postura humilde diante de outros povos, a ansiedade pelas bênçãos dos centros rapinadores.

O complexo de vira-latas vem exercendo, no Brasil, um papel político importante. Nossa casta dominante – e seus imitadores da classe média – sempre viveu espiritualmente em certas metrópoles do exterior, as quais, em seu “universo” de pensamento, monopolizariam tudo de bom que há no mundo. De lá sempre importaram seus códigos de diferenciação e prestígio: a língua estrangeira, a moda, as tecnologias, os nomes de seus filhos, o estilo de vida. De resto, nossa gente, nossa organização, nossas tradições e nossas coisas são “de baixo nível”, “uma bagunça”, “um atraso de vida”, “não tem nada a ver”, “brega”, “coisa de negro, de nordestino, de índio”, “só no Brasil mesmo”. Por força da repetição pelos seus aparelhos ideológicos, conseguiram que até mesmo uma parte da plebe saia babando essas tolices por aí. E os inferiores que se recolham ao seu devido (e imutável) lugar.

Sem dúvida que, para se mudar esse estado de coisas com o qual a enorme maioria das pessoas está profundamente insatisfeita no Brasil, é fundamental que se reconheçam os nossos valores, que tenhamos orgulho genuíno de sermos o que somos, que dialoguemos com o exterior de cabeça erguida, em determinadas ocasiões até mesmo com soberba. O maior obstáculo que temos a superar para construir um país melhor está em nós mesmos.

10 comentários:

Anônimo disse...

Como você tem razão, Adriano. Com o complexo de vira-latas nunca vamos chegar a lugar nenhum. Essa idiotice precisa ser extirpada se quisermos ver este país sair de sua eterna crise. Nossa maior crise é de valores.

Anônimo disse...

A realidade é que esse sentimento de inferioridade vem também do fracasso desse país em prover dignidade para o povo.

Anônimo disse...

Viva os Estados Unidos, a grande nação! Quem é você para falar assim dos americanos!

Anônimo disse...

Adriano - tenho um recadinho da Marta Suplício pra vc: relaxa e goza...

Anônimo disse...

Com esse complexo de vira-latas nunca chegaremos a contruir um país digno. Vc está certo.

Anônimo disse...

Um povo que tem preconceito contra si mesmo está realmente condenado ao fracasso.

Anônimo disse...

Isso que vc diz e' muito se'rio e tem de ser considerado com toda aten'ca~o. N~ao somos melhores nem piores do que ningu'em.

Anônimo disse...

Um povo vira-latas está condenado para sempre ao subdesenvolvimento. realmente é preciso que o povo levante a cabeça e

Anônimo disse...

Se você já tivesse morado nos Estados Unidos, entenderia porque existe essa postura no Brasil. Lá tudo é muito melhor do que aqui.

Anônimo disse...

Aqui nestes comentários mesmo há alguns vira-latas que lhe fizeram o serviço de ser uma prova viva do que vc está dizendo, Adriano