sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Futebol-prosa, futebol-poesia

Adriano de Paula Rabelo


Pouco depois da partida final da Copa de 1970, o cineasta e poeta italiano Pier Paolo Pasolini – ele mesmo um bom e apaixonado meio-campista amador – publicou, no jornal Il Giorno, um artigo em que apresenta uma visão bastante original do futebol como uma linguagem que, em sua expressão mais refinada, produz seus poetas e seus prosadores.

O “sistema de signos” futebolístico, para Pasolini, reúne todas as características de uma linguagem, possuindo como unidade mínima o que ele chama de “podema” (do grego podos, pés), que corresponde a um jogador que utiliza os pés para chutar a bola. Os vinte e dois jogadores estão em analogia com as letras do alfabeto, combinando-se em infinitas possibilidades para a formação das “palavras futebolísticas” através de suas trocas de passes. Tais palavras, combinadas, formam um discurso regulado por normas sintáticas próprias, que se exprime nas características da partida. Esta se realiza como um verdadeiro discurso dramático. Os emissores da linguagem futebolística, portanto, são os jogadores, e seus decifradores, os torcedores. Ambos possuem um código comum, isto é, um repertório de fundamentos, tais como o chute, o passe, a marcação, o cabeceio, o lançamento, o combate e os esquemas táticos que exprimem o jogo elementar levado a cabo por todo time em campo. É como se fosse a linguagem instrumental, falada no dia-a-dia em situações marcadas pelo pragmatismo.

No entanto, o futebol atinge sua melhor expressão quando assume todas as características de um objeto estético por meio de seus subcódigos, tornando-se uma linguagem fundamentalmente prosaica ou poética. Tal distinção entre prosa e poesia, para Pasolini, é exclusivamente técnica, não havendo nenhum reconhecimento de superioridade de uma sobre a outra, mas adequando-se cada uma às inclinações próprias de cada jogador e de cada equipe. Está construída aí toda uma poética do futebol.

Esse interessante sistema teórico se aplica para classificar estilos de atuação de jogadores e países. Um jogador-prosador seria o cerebral, o que possui boa visão de jogo, controle de bola e passe excelente, participando do jogo o tempo todo, liderando o time e chamando a responsabilidade para si, adequando-se com mais facilidade aos esquemas táticos e navegando neles com eficácia. O futebol-prosa, para Pasolini, “baseia-se na sintaxe, no jogo coletivo e organizado, na execução racional do código”. Na tradição do futebol brasileiro, jogadores como Zizinho, Bellini, Nilton Santos, Didi, Gerson, Toninho Cerezo, Falcão, Dunga e atualmente Gilberto Silva e Kaká poderiam ser classificados como prosadores futebolísticos, vários deles, mais exatamente, praticantes de uma prosa poética. Já o jogador-poeta seria o solista, o talento individual, o mestre do drible, da jogada de efeito e do gol, isto é, aquele que, amparado por uma boa organização do jogo coletivo, subverte o sistema e a organização coletiva, reinventando o código em formas inesperadas e sublimes. A quintessência do futebol-poesia seriam, em nossa tradição, Pelé e Garrincha, mas muitas outras de nossas maiores glórias poderiam ser classificadas aqui: Friedenreich, Leônidas, Domingos da Guia, Jairzinho, Rivelino, Zico, Reinaldo, Romário e atualmente Ronaldinho Gaúcho e Robinho.


Pelé, sem tocar na bola, dribla o goleiro uruguaio Mazurkiewcz na semifinal da Copa de 1970


Pasolini considera que, por motivos históricos e culturais, o futebol praticado por certos países é essencialmente prosa, seja ela realista (como a da Inglaterra ou da Alemanha) ou estetizante (como a da Itália ou da França). Outros, por sua vez, praticam um futebol cuja essência é poesia, e a epítome do jogo poético, para o cineasta, é o futebol praticado pelos jogadores brasileiros, que “são os melhores dribladores do mundo e os melhores fazedores de gol”. Em geral o futebol europeu possuiria um caráter mais prosaico, e o sul-americano, um caráter mais poético.

Ampliando essa instigante classificação, talvez se poderia dizer que historicamente o futebol também tenha tido uma era fundamentalmente poética e outra fundamentalmente prosaica. O marco do final do primeiro desses períodos é justamente a Copa do Mundo de 1970, no México, em que o Brasil apresentou um futebol espetacular no qual se sobressaíram várias individualidades fulgurantes praticando um jogo cheio de lances de efeito. A partir da primeira metade da década de 70, podendo ser tomado como marco do início da nova era a Copa de 1974, na Alemanha, vencida pela anfitriã, o futebol tornou-se marcadamente prosaico. Tal revolução se realizou dentro e fora dos campos. De um lado, a evolução das técnicas de preparação física e dos esquemas táticos de forte apelo coletivista que propugnavam a marcação forte, a ocupação dos espaços e a saída rápida em contra-ataque conheceram enorme prestígio entre os treinadores de todo o mundo como sinônimo de futebol moderno, diminuindo sensivelmente o campo de ação do craque genial. De outro lado, o futebol se tornou um grande business, movimentando cifras astronômicas e eliminando espaços para o improviso e as ações de caráter romântico.


Garrincha prepara-se para driblar toda uma coletividade


Nesse novo contexto, muito haveria a dizer sobre o futebol brasileiro, que inicialmente teve dificuldade para se adaptar aos novos paradigmas, fracassando nas Copas de 74 e 78 como se jogasse de forma contrária a sua natureza. Uma tentativa de recuperar o futebol-poesia foi feita na Copa de 1982, na Espanha, em que o Brasil apresentou um jogo espetacular, de enorme apelo estético, mas foi derrotado nas quartas-de-final pela mesma prosaica Itália da final de 70. A partir de então, o futebol-prosa foi adquirindo cada vez mais defensores no país, a despeito de fracassos clamorosos nas duas copas seguintes. O futebol brasileiro prosaico, conhecido como “de resultados”, só se tornou vencedor quando abriu espaço para que a individualidade improvisadora resolvesse as partidas nos momentos difíceis, jogando muito em função dela. Assim foi com Romário em 1994 e com Ronaldo em 2002.

A trajetória do futebol brasileiro, ainda mais após a revolução futebolística dos anos 1970, tem mostrado que estamos condenados ao fracasso quando renunciamos ao nosso caráter personalista e macunaímico em nome da eficiência impessoal e prosaica que está na base de outras formações históricas e culturais. O espírito picaresco, o subdesenvolvimento criativo, o samba, a capoeira e a molecagem são aspectos inerentes ao nosso estilo de jogo e de vida. Por isso, os times que marcaram época e constituíram boa parte da mitologia dos grandes clubes brasileiros são aqueles que resultaram da junção feliz de várias individualidades excepcionais. Por exemplo: o Expresso da Vitória do Vasco da Gama na segunda metade dos anos 40, com Ademir e Heleno de Freitas; o Santos de Pelé, Coutinho e Dorval, e o Botafogo de Garrincha, Didi e Amarildo, nos anos 60; o Palmeiras da Academia de Futebol, com Ademir da Guia e Leivinha, e o Internacional de Falcão e Figueroa, nos anos 70; o Atlético Mineiro de Toninho Cerezo e Reinaldo, o Flamengo de Zico e Júnior, e o Corinthians de Sócrates e Vladimir, nos anos 80; o São Paulo de Müller e Raí no início dos anos 90.

6 comentários:

Anônimo disse...

E aí Adriano Beleza?? Gostei do texto. vc mostra nao só que é um excelente jogador mas que conhece muito sobre futebol

Anônimo disse...

Vc só pode ser um atleticano para se esquecer do grande Cruzeiro de Tostão, Dirceu Lopes e Natal nos anos 60.

Anônimo disse...

Ora, Adriano, aviões caindo e explodindo, Renan Calheiros roubando, tiros matando muita gente todo dia nas cidades grandes, corrupção pra todo lado e você me vem com esse papinho da "poesia do futebol brasileiro". Acorda, rapaz!

Anônimo disse...

Tem gente que acha que só se deve falar das nossas misérias e do terror do cotidiano brasileiro. Seu texto nada tem de alienado e trata de uma questão essencial para todos nós: a nossa identidade e o nosso destino como nação. Parabéns.

Anônimo disse...

Pasolini não viveu para ver a conversão do futebol brasileiro e do país ao mais reles prosaísmo. Estamos vivendo o pior período de nossa história.

Anônimo disse...

Esse futebol que tanto exaltas é o ópio do povo brasileiro.